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Soja: um negócio da China, mas para o Brasil



Amélio Dall’Agnol

Responsável pelo ingresso de mais de US$ 41 bilhões (2018) ou cerca de 15% de tudo o que o Brasil exportou no ano, a soja ponteia soberana no horizonte do agronegócio nacional. Ela reina no lugar que já foi da cana-de-açúcar (Brasil Colônia) e do café (Brasil Império/República), e tudo indica que não cederá esse espaço tão cedo - se é que algum dia o cederá - de vez que o Brasil é a principal promessa de oferta futura do grão para o mercado mundial, dadas as suas imensas reservas de terras aptas e disponíveis para o seu cultivo. 

Em 2019, a soja está comemorando 137 anos desde sua introdução no país. Ela ingressou e foi testada pela primeira vez no Estado da Bahia, numa latitude próxima a 12ºS, onde fracassou como potencial lavoura comercial na época, dadas as condições de baixa latitude da região. Nessa época, as variedades de soja disponíveis no mercado mundial, só se adaptavam em latitudes próximas ou superiores a 30°, prevalecentes nos principais países produtores de soja da época: China e Estados Unidos (EUA), principalmente.

Dadas as condições desfavoráveis para o seu desenvolvimento na Bahia, a soja permaneceu esquecida no Brasil por mais de meio século. 

Foi somente a partir da década de 1940, quando testada para as condições subtropicais do extremo sul brasileiro (latitudes de 25°S a 32°S), que a soja despontou com reais possibilidades de expandir-se pelo Brasil, dadas as semelhanças edafoclimáticas entre o sul do Brasil e sul dos EUA, origem dos materiais genéticos testados. 

O primeiro registro de produção comercial de soja no Brasil data de 1941: área de 702 ha, produção de 457 toneladas (t) e rendimento inferior a 700 kg/ha. Nesse mesmo ano, foi instalada em Santa Rosa, Rio Grande do Sul, a primeira esmagadora de soja do país. Ali, também, teve início o cultivo comercial da oleaginosa em território brasileiro, alcançando as 25 mil t em 1949, 100 mil t em meados dos anos 50 e 1,0 milhão de toneladas (Mt) em 1969, a partir de quando a produção explodiu, alcançando cerca de 15 Mt em 1979 e promovendo o Brasil de produtor periférico até 1970, para a segunda posição no ranking dos grandes produtores mundiais de soja e alcançando a liderança em 2018/19. Sua participação no bolo global cresceu de 1% em 1960, para cerca de 33,5% em 2018, quando o País desfrutou a colheita recorde de 119 Mt.

Depois de ocupar praticamente todas as áreas disponíveis para o seu cultivo na Região Sul, a soja avançou com extremo apetite sobre a despovoada e desvalorizada Região de Cerrado do meio-oeste brasileiro, transformando essa região desprestigiada no principal celeiro do país. Em 1970, a produção da oleaginosa na região tropical brasileira era insignificante: 1,37% da produção nacional. Avançou para 15,33% em 1979, para 44,4% no final dos anos 80 e atualmente lidera a produção do país com o porcentual de 77,2%, sinalizando que poderá ocupar mais espaços a cada nova safra, se a demanda do mercado assim o desejar. 

A década de 1970 foi a década da virada do agronegócio brasileiro e a soja foi o motor dessa transformação. Foi o início de uma viagem sem volta rumo à região central do país, elevando a produção da região quase 100 vezes (722 mil toneladas em 1978 ante 77,2 Mt em 2017), conforme já anteriormente sinalizado. No mesmo período, a produção da região tradicional (RS, SC, PR e SP) também cresceu, passando de 7,3 Mt em 1970, para 42 Mt em 2018.

As principais causas do rápido avanço da soja na região subtropical foram seus altos preços de mercado em meados dos anos 70, além da boa adaptação das variedades introduzidas dos EUA. Também foi importante o perfeito casamento da leguminosa com o trigo, permitindo a colheita de duas safras no mesmo ano, utilizando a mesma infra-estrutura de armazéns, de máquinas e de mão-de-obra.

Para a região central do país, o grande motivador para o deslanche da produção da soja foi o baixo preço da terra de Cerrado e o desenvolvimento da soja adaptada às condições de baixa latitude do Centro Oeste e a um conjunto de outras tecnologias, principalmente as vinculadas ao manejo do solo e da sua fertilidade, as quais viabilizaram o Bioma como importante centro de produção de grãos, fibras e carnes. Também, foram eventos importantes para o desenvolvimento do Cerrado, a boa distribuição das chuvas no verão; a topografia favorável à mecanização e a melhoria da infra-estrutura de rodovias e comunicações, no marco da construção de Brasília, a nova Capital do Brasil. Finalmente, contou positivamente para o avanço da soja na região tropical, o bom nível econômico e tecnológico dos produtores que migraram do sul, levando a experiência no manejo da cultura e a garra do gaúcho, além de algum capital para investimentos.

Na sua curta trajetória pelo Brasil, a soja enfrentou problemas que foram rapidamente solucionados pela pesquisa nacional. Nos anos 60, embora a pesquisa fosse pouca e concentrada – como a própria soja - no sul do país, os problemas também eram poucos. Os mais importantes foram a falta de boas variedades e o controle das plantas daninhas, do percevejo verde e da lagarta da soja. As doenças não constituíam um problema tão sério quanto o é atualmente e, portanto, eram quase negligenciadas. Pústula bacteriana e Fogo selvagem constituíram as doenças mais importantes, sendo facilmente controladas pela incorporação de genes de resistência disponíveis na coleção de germoplasma da Embrapa. 

Na década de 1970, a pesquisa com soja foi fortalecida com o estabelecimento da Embrapa Soja (Londrina, PR) e por outras unidades de pesquisa, com destaque para a Emgopa (Goiás) e a Embrapa Cerrados, no Distrito Federal. Variedades adaptadas para as condições do Brasil-Central foram desenvolvidas, assim como variedades resistentes à Mancha-olho-de-rã, uma doença desconhecida e com potencial de dano maior do que as doenças conhecidas até então. 

O preço excepcional da soja em meados dos anos 70, além de estimular o produtor ao uso de mais e melhores tecnologias, sua rentabilidade também favoreceu excessos no uso de pesticidas, problema parcialmente contornado com a implementação do programa Manejo Integrado de Pragas (MIP), o que reduziu de cinco para duas a média anual de pulverizações com inseticidas. Infelizmente, o programa perdeu força e os agricultores estão voltando ao passado.

A década de 1980 foi muito produtiva no desenvolvimento e oferta de variedades e outras tecnologias ligadas ao manejo dos solos e da nutrição das plantas para a região do Cerrado. No final dessa década, surgiu o Cancro-da-haste, a mais devastadora doença da soja registrada até essa data. Felizmente, a existência de abundantes fontes de resistência no banco de germoplasma da Embrapa permitiu que o mal fosse prontamente sanado, via incorporação de resistência em novas variedades comerciais. 

Na década de 1990, a soja continuou a expandir-se no bioma Cerrado e com ela foram aparecendo problemas novos, como o nematoide de cisto (anos 90) e a Ferrugem Asiática (2001), presentemente a mais importante doença da soja no mundo. Para o nematóide de cisto, a pesquisa já disponibilizou variedades tolerantes ao problema, mas não vislumbra solução fácil para o problema da Ferrugem, visto não haver sido encontrada, ainda, uma boa fonte de resistência genética à doença. A solução, em curto prazo, é o tratamento com fungicidas.

Atualmente, a pesquisa está concentrando esforços no desenvolvimento de cultivares transgênicas, incorporando novos genes, não apenas aqueles que conferem resistência a herbicidas (soja RR) e a insetos-praga (soja Bt), mas, também, variedades com melhores características nutricionais, com tolerância ao déficit hídrico, com características terapêuticas assim como, ciclo e porte mais adequados aos sistemas de produção de cada local. 

O futuro da soja brasileira é promissor. Não há brasileiro que não esteja excitado com o bom momento que viveu e vive o mercado da soja no Brasil e as boas perspectivas desse agronegócio para o futuro do país. Realizando um exercício de prospecção sobre o que poderá acontecer com a soja brasileira, tomando como base a realidade atual, parece pertinente afirmar que:
•    a demanda mundial pela soja continuará crescendo no ritmo das três ultimas décadas, de vez que a população humana, no curto e médio prazos, continuará crescendo, e precisando de mais alimentos;
•    o poder aquisitivo da população continuará aumentando, destacadamente no Continente Asiático, onde se concentra o maior contingente de humanos; 
•    os usos industriais do grão de soja (biodiesel, tintas, vernizes, lubrificantes, detergentes, adesivos, entre outros), apoiarão o aumento da demanda pelo uso não alimentício do grão da oleaginosa; 
•    o consumo interno de soja crescerá, estimulado pelo eficiente crescimento da indústria de carnes, cuja produção é altamente dependente do farelo proteico da soja;
•    o protecionismo e os subsídios disponibilizados à soja pelos países ricos tenderão a diminuir por pressão dos países que integram a Organização Mundial do Comércio, aumentando, conseqüentemente, os preços internacionais e estimulando a produção e as exportações brasileiras;
•    a produção de soja dos principais concorrentes do Brasil (EUA, Argentina, China, Índia e Paraguai), que juntos com o Brasil produzem mais de 90% da soja mundial, tendem a estabilizar-se ou crescer pouco, pois suas fronteiras agrícolas, diferentemente do Brasil, estão quase ou totalmente esgotadas;
•    a cadeia produtiva da soja brasileira, excessivamente onerada por uma cascata de impostos, deverá ser desonerada para incrementar a sua competitividade no mercado externo, de vez que o país convive com a necessidade de exportar mais, para almejar uma posição mais justa no mercado global;
•    a produção de soja no Brasil, tenderá a concentrar-se cada vez mais em grandes propriedades da região central, onde o uso intensivo de tecnologia é uma prática rotineira e, como resultado, a produtividade é maior. Por falta de competitividade, a produção de soja das pequenas e médias propriedades da Região Sul tenderá a ser substituída por atividades agrícolas mais rentáveis (mais intensivas no uso de mão-de-obra), como produção de leite, criação de suínos e de aves, cultivo de frutas e de hortaliças, ecoturismo, entre outras; e
•    o Brasil deverá ser o grande provedor do esperado aumento da demanda mundial de soja por possuir, apenas no ecossistema do Cerrado, mais de 50 milhões de hectares de terras ainda selvagens ou com pastagens degradadas e aptas para a sua imediata incorporação ao processo produtivo de soja e outros grãos. O mercado ditará a velocidade com que isso poderá acontecer. 

A soja foi um grande negócio para a China, hoje é um grande negócio do Brasil.

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