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Vinho, do parreiral à mesa



Decio Luiz Gazzoni

            O vinho é um dos prazeres mais sofisticados da vida. A história da produção da uva, elaboração e consumo de vinho se estende por milênios. Há evidências que os primórdios da elaboração de vinho ocorreram na Geórgia e no Irã, cerca de 6.000 a 5.000 a.C. Neste artigo vamos descrever, sinteticamente, como é elaborado um vinho de qualidade.

            A ciência do vinho é conhecida como enologia, um produtor de vinho é um vinicultor e o agricultor que produz a uva é o viticultor. Como qualquer alimento, para elaborar um bom vinho a qualidade da matéria prima – a uva – é fundamental.

            A espécie mais comum de uva para elaboração de vinhos finos é a Vitis vinifera, que inclui as variedades de origem europeia. Entre as variedades de uvas destinadas à elaboração de vinhos finos, no Brasil, destacam-se: Tintos – Cabernet Sauvignon, Merlot, Pinot Noir, Tannat e Cabernet Franc; Brancos – Chardonnay, Gewürztraminer, Malvasia, Moscato Branco, Riesling Itálico, Trebbiano, Glera, Moscato Embrapa e Lorena BRS. As variedades de uva de mesa não se prestam para a produção de bons vinhos.

 

Produção e colheita

            A qualidade das uvas determina a qualidade do vinho mais do que qualquer outro fator. Ela é afetada pela variedade, bem como pelo clima durante a estação de crescimento, pelos nutrientes minerais, acidez e microbioma do solo, método de poda, manejo fitossanitário, a época da colheita e outras práticas de manejo.

            Seguramente o leitor já ouviu falar em terroir, que nada mais é que o conjunto dos fatores de variedade, cultivo, solo e clima, que vão moldar a qualidade do futuro vinho. Assim, o terroir é a interação entre o meio natural e os fatores humanos. E esse é um dos aspectos essenciais do terroir, de não abranger somente clima, solo, relevo, abarcando, também, os fatores humanos da produção, como a escolha das variedades, aspectos agronômicos e de elaboração dos produtos.

            Entre as práticas de campo, uma das mais importantes é a colheita da uva. Existe o momento correto de colheita, a forma como é feita, os cuidados com a sanidade e a homogeneidade das bagas.

            A colheita das uvas pode ser manual ou mecânica, sendo o primeiro passo na elaboração do vinho. A decisão de colher uvas é tomada pelo viticultor, lastreada na sua experiência de muitos anos. Ou conjuntamente com o enólogo, em virtude do tipo de vinho que deseja elaborar, considerando o amadurecimento fisiológico e sabor das bagas, apoiada por métodos como análise do nível de açúcar (Brix), acidez e pH das uvas. As previsões meteorológicas devem ser levadas em consideração, para garantir a colheita nas melhores condições e o transporte rápido para a indústria vinícola. Com a expansão da viticultura de precisão, cada parcela do vinhedo tem sido manejada separadamente, sendo a uva destinada para produtos específicos, o que interfere em práticas culturais, como a colheita.

            A colheita manual tem a vantagem de usar mão de obra especializada para não apenas colher os cachos maduros mas, também, para evitar aqueles que não estão maduros, com enfermidades ou outros defeitos. É a garantia de que frutas de qualidade inferior não contaminem um lote do futuro vinho.

            A colheita mecânica tem se expandido progressivamente, por conta da dificuldade de contratação de mão-de-obra. As colhedoras mecânicas têm a vantagem da eficiência, cobrindo uma grande área de vinhedos em um período de tempo relativamente curto, e com um investimento mínimo de mão de obra por tonelada colhida. Uma desvantagem da colheita mecânica é a inclusão indiscriminada de material indesejado, especialmente caules e folhas, mas, também, uvas mofadas, detritos de metal, pedras e até pequenos animais e ninhos de pássaros.

            Cuidados devem ser observados no transporte do vinhedo para a indústria, o qual deve ser efetuado em vasilhames pequenos ou bins (caixas com capacidade para até 500 quilos), higienizados, evitando solavancos, exposição demorada ao sol e atraso na entrega da uva para a indústria.

 

Esmagamento

            Na recepção da indústria o lote de uvas é identificado, pesado, analisado e encaminhado para a moega de uma máquina esmagadora e desengaçadora. Esmagamento é o processo de espremer suavemente as frutas e quebrar as cascas, a fim de liberar o conteúdo do interior das bagas. O desengace consiste em remover as uvas do ráquis ou engace, que é a parte do caule que suporta as bagas de uvas.

            Existem diversos modelos de máquinas que executam esse processo, porém, como regra geral, são compostas de pás circundadas por um cilindro com pequenas ranhuras circulares, que giram, permitindo que as bagas sejam arrancadas dos caules e saiam pelos furos.

            Os engaces são removidos antes da fermentação, pois apresentam um teor elevado de tanino que, em excesso, confere sabor amargo e adstringente ao vinho. Dependendo do processo, uma pequena quantidade de partículas do caule pode ser mantida com as uvas, para compor a estrutura de tanino do futuro vinho.

            As cascas da uva conferem a tonalidade dos vinhos tintos, devido à presença de antocianinas, sendo o contato entre o suco e as cascas essencial para a formação da cor característica de determinado tipo de vinho. As antocianinas mais comumente encontradas em vinhos tintos são malvidina, cianidina, delfinidina, petunidina e peonidina. Além de cor, as cascas da uva também conferem sabor e determinada quantidade de taninos ao vinho tinto.

            O vinho branco é elaborado pela fermentação do suco, obtido pressionando uvas esmagadas efetuando-se a remoção das cascas, denominada “vinificação em branco”. É possível produzir vinhos brancos (incolores) a partir de uvas tintas pela prensagem meticulosa de frutas, minimizando o contato entre o suco de uva e as cascas.

            No caso dos vinhos roses, a fruta é esmagada e as cascas escuras são deixadas em contato com o suco apenas o tempo suficiente para extrair a cor que o enólogo deseja conferir ao vinho. O mosto é então prensado e a fermentação continua como se estivesse sendo elaborado um vinho branco.

 

Prensagem

            No esmagamento, cerca de 70% do suco é extraído, obtendo-se um suco chamado de corrida livre, que é de qualidade superior ao suco prensado, produzindo vinhos de melhor qualidade. A prensagem é o ato de aplicar pressão em uvas ou bagaço para separar o suco ou o vinho das cascas da uva. O suco prensado é considerado de qualidade inferior, devido ao maior teor de compostos fenólicos, que podem conferir um sabor herbáceo ao vinho.

            Na produção de vinhos tintos, o mosto é prensado após a fermentação primária, que separa as cascas e outras matérias sólidas do líquido. Para vinhos brancos, o líquido é separado do mosto antes da fermentação. Para a elaboração de vinhos rose, as películas podem ser mantidas em contato por um período curto para conferir cor ao vinho.

 

Fermentação alcoólica

            A fermentação primária, ou alcoólica, transforma os açúcares do vinho em etanol (álcool etílico), um processo mediado por fermentos ou leveduras. As leveduras responsáveis pela fermentação primária normalmente estão presentes nas uvas, mas isso pode redundar em resultados imprevisíveis, dependendo das espécies de leveduras, prejudicando a qualidade do vinho.

            Por esse motivo, as leveduras presentes na uva são eliminadas, com a adição de dióxido de enxofre (SO2) ao mosto, devido às suas propriedades antimicrobiana e antioxidante. Uma levedura cultivada, de qualidade conhecida e garantida, é adicionada ao mosto, sendo a ação denominada pé-de-cuba. A levedura mais utilizada é a Saccharomyces cerevisiae.

            Entretanto, existe um espaço de mercado de vinhos, composto por consumidores que preferem “produtos naturais”, em que são utilizadas as leveduras pré-existentes na uva, evitando a intervenção de produtos químicos, como o anidrido sulfuroso.

            Durante a fermentação primária, que demora uma a duas semanas, a levedura converte a maioria dos açúcares do suco de uva em álcool. O processo fermentativo provoca, naturalmente, um aumento de temperatura, que precisa ser controlado, pois a temperatura durante a fermentação afeta tanto o sabor do produto final quanto a velocidade da fermentação. Para vinhos tintos, a temperatura é tipicamente mantida entre 22 a 25 °C, e para vinhos brancos de 15 a 18 °C.

            Para cada grama de açúcar que é convertido na fermentação, cerca de 0,6 g de álcool é produzido. Logo, para atingir uma concentração de álcool de 12%, o mosto deve conter cerca de 20% de açúcares. Se o teor de açúcar das uvas for muito baixo para obter a porcentagem de álcool desejada, o açúcar (sacarose) pode ser adicionado (chaptalização), processo que está sujeito às normas da legislação.

            Após a fermentação primária das uvas vermelhas, o vinho é bombeado para outros vasilhames, e as cascas são prensadas para extrair o líquido ainda retido. O vinho de prensa pode ou não ser misturado com o vinho bombeado anteriormente, a critério do enólogo, e de acordo com as especificações de cada tipo de vinho que se pretende elaborar.

 

Fermentação malolática

            Na sequência de elaboração de vinho tinto ocorre a fermentação malolática, um processo bacteriano que converte ácido málico – que é o ácido que confere o sabor de “maçã verde” à fruta – em ácido lático (presente no leite), suavizando o sabor do vinho. Além de reduzir a acidez do vinho, a fermentação malolática confere uma textura mais cremosa, aromas e sabores lácteos e amanteigados ao vinho.

            Em alguns países, e em casos especiais, a fermentação malolática é induzida pelo enólogo, sendo os recipientes com vinho inoculados com colônias monoclonais de bactérias. A espécie mais comum é Oenococcus oeni, também sendo usadas bactérias dos gêneros Lactobacillus e Pediococcus.

            A levedura O. oeni pode sintetizar moléculas de álcoois superiores, voláteis que são percebidos na análise sensorial como notas frutadas no aroma do vinho. Também pode decompor compostos aromáticos, ligados a uma molécula de açúcar. Dessa reação química resultam compostos voláteis agradáveis, percebido no buquê de aromas do vinho.

            A fermentação malolática deve ser acompanhada pelo enólogo, incluindo análises químicas do vinho, para garantir que os compostos favoráveis estejam presentes no vinho, e, também, para evitar a formação de substâncias indesejadas.

 

Corte e clarificação

            Lotes diferentes de vinho podem ser misturados antes do engarrafamento para atingir o sabor e o aroma desejados, processo denominado de corte, blend ou assemblage. Os enólogos combinam as características de cada uva para criar vinhos mais equilibrados, complexos e sofisticados. O corte pode ser simples, como adequar os níveis de acidez ou tanino; ou complexos, como misturar diferentes variedades ou safras, para atingir um sabor consistente, característico de determinado rótulo.

            Substâncias com poder clarificante são usados durante a vinificação para diminuir a quantidade de taninos, reduzir a adstringência e remover partículas microscópicas que podem turvar os vinhos, como células mortas de levedura (borras), bactérias, tartaratos, proteínas, pectinas, taninos e compostos fenólicos, bem como pedaços de casca de uva, polpa, caules e gomas.

            O enólogo decide quais agentes de clarificação são usados. A gelatina é um método tradicional para clarificação de vinhos, sendo um excelente redutor do teor de tanino. Após a clarificação, a gelatina forma um sedimento que é removido por filtração, antes do engarrafamento.

            Além da gelatina, outros agentes de clarificação para vinho são derivados de produtos animais, como caseinato de potássio (caseína é proteína do leite), clara de ovo e albumina de ovo. Agentes de filtragem não animais também são frequentemente usados, como bentonita, terra diatomácea, almofadas de celulose, filtros de papel e filtros de membrana, que são filmes finos de material de polímero plástico.

 

Finalização

            Na fase final de elaboração do vinho, alguns procedimentos são adotados, como a filtração, que objetiva adequar a tonalidade do vinho e promover a sua estabilização microbiana. Para tanto, organismos que afetam a estabilidade do vinho são removidos, reduzindo assim a probabilidade de refermentação ou deterioração.

            Também podem ser adicionados conservantes, para evitar a degradação da qualidade do vinho. O conservante mais comum usado na vinificação é o dióxido de enxofre (SO2), normalmente adicionado em uma das seguintes formas: dióxido de enxofre líquido, metabissulfito de sódio ou potássio e o sorbato de potássio. O dióxido de enxofre tem duas ações primárias, sendo um agente antimicrobiano e um antioxidante, e ambas têm o objetivo de manter a qualidade do vinho.

            A menos que seja um vinho para consumo imediato, ele é transferido para barris, sendo a madeira do carvalho a mais comumente utilizada. O vinho permanece no recipiente para amadurecer por um período de semanas ou meses, objetivando conferir aromas característicos de carvalho ao vinho.

            Atingido o período estabelecido para o armazenamento, o vinho é engarrafado, sendo o vasilhame selado com rolhas de cortiça, para manter sua qualidade até o consumo. Durante o período de pré-consumo, deve ser mantido em temperatura adequada (12-16oC), em locais de baixa luminosidade e sem perturbações mecânicas, como trepidações.

           

Vinho e interações sociais

            Finalizando, sugerimos ao leitor um ensaio produzido por Daniela Cardoso e Luciano Borges Muniz (bit.ly/4jjDoY0), que analisa a relação comunicativa e psicanalítica do vinho na interação humana. Os autores analisam o vinho mais além do prazer pessoal pela sensação organolética, constituindo-se em objeto cultural e sensorial, que desencadeia significados e afeta os processos mentais e emocionais dos indivíduos.

            Segundo os autores, o vinho atua como um símbolo poderoso, estimulando a expressão de desejos, impulsos e emoções, proporcionando uma forma de conexão social e autoconhecimento. Aventam como os rituais e as experiências compartilhadas em torno do vinho podem fortalecer os vínculos interpessoais e criar um senso de comunidade. Segundo eles, compreender esses aspectos é fundamental para explorar o vinho como uma ferramenta que promove a conexão social e aprofunda a compreensão da psique humana.

 

            Independente da motivação, deguste um bom vinho. Salute!

 

O autor é enólogo e engenheiro agrônomo, pesquisador da Embrapa Soja, membro do Conselho Científico Agro Sustentável e da Academia Brasileira de Ciência Agronômica.

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