
Nas últimas semanas, muito tem sido falado sobre a inflação de alimentos, e um dos exemplos didáticos é a violenta escalada do preço dos ovos. Há diversas razões para tanto, mas uma delas repousa em um fator altamente preocupante: os EUA estão importando ovos de quem quer que os disponha, não interessando o preço, porque os rebanhos aviários – frangos e poedeiras – estão sendo devastados naquele país, por uma epidemia de gripe aviária, causada pelo vírus H5N1.
Mais além do que a falta de ovos, a grande preocupação é: a gripe aviária pode se tornar uma pandemia entre humanos, como ocorreu com a Covid 19? Previsões de epidemias lembram previsões do tempo: impossível antecipar todos os detalhes de uma tempestade em particular; entrementes podemos prever se ela vai acontecer e tomar as devidas providências para evitar um desastre.
Os vírus que causam a gripe aviária são ameaças permanentes à saúde global. O presente surto de H5N1 é especialmente preocupante, pois afetou mais de 168 milhões de aves de criação nos EUA (até 4/4/25), tendo sido identificado em outros animais, incluindo mamíferos. As infecções humanas por H5N1 registram 954 casos conhecidos no mundo, sendo 262 entre 2023 e 2024, com 70 deles ocorrendo nos EUA.
Mas, o diabo mora nos detalhes. O primeiro deles é que 54% desses casos foram fatais, uma taxa de mortalidade cerca de 20 vezes maior do que a clássica pandemia de gripe de 1918. O segundo detalhe: até o momento, não foram registrados casos de transmissão entre humanos, as contaminações se deram a partir de animais. Quando o vírus desenvolve mecanismos para transmissão dentro da espécie do hospedeiro, está presente um dos fatores primordiais para uma epidemia ou pandemia.
Examinando por uma perspectiva temporal, as evidências apontam que o H5N1 está exibindo um padrão conhecido de invasão gradual de populações animais para humanas. Como muitos vírus emergentes, o H5N1 está fazendo mudanças evolutivas incrementais, que podem, em teoria, permitir que ele seja transmitido entre pessoas. Os períodos entre essas etapas evolutivas apresentam oportunidades para desacelerar esse processo e possivelmente evitar um desastre global, desde que haja uma intervenção correta e na escala necessária. Para os interessados em aprofundar no tema, o prof. Ron Barrett e colaboradores analisam esta perspectiva no livro “Emerging Infections: Three Epidemiological Transitions from Prehistory to the Present”.
Transbordamento
De forma muito simplificada, para que um vírus ingresse em uma célula de um hospedeiro, ele necessita dispor da “chave” correta para abrir a “fechadura” dessa célula. Uma vez ingressando na célula, o vírus replica seu próprio material genético, “sequestrando” os processos de replicação genômica do hospedeiro.
Como novas “chaves” podem surgir apenas por meio de mutação aleatória, a chance de obter uma “chave” correta para determinada espécie é pequena. A probabilidade aumenta com um elevado nível de infecção no hospedeiro primário (maior número de mutações) e com contatos muito frequentes do hospedeiro original com outras espécies (oportunidade para testar a “chave”).
Quando um patógeno causador de doenças, como um vírus da gripe, já está adaptado para infectar uma espécie animal específica, ele pode, eventualmente, desenvolver a capacidade de infectar uma nova espécie, como humanos, por meio de um processo chamado transbordamento (spillover, em inglês). Isto é favorecido quando a população de uma determinada espécie hospedeira, apresenta índices de infecção muito elevados. O contato com outras espécies permite que um vírus que apresente alguma mutação, se adapte a alguma dessas espécies, infectando-a. Mais grave ainda é se essa infecção ocorre com um vírus cuja mutação permita a contaminação de outros indivíduos, dentro da mesma espécie.
H5N1
O descrito acima se aplica ao vírus da gripe aviária, o H5N1. Em 2024, especialmente nos EUA, houve muitos surtos em animais selvagens e domésticos, especialmente entre pássaros, criação de aves e gado. Mas também houve um pequeno número de casos em humanos, a maioria dos quais ocorreu entre trabalhadores de granjas de aves e indústrias de laticínios, onde houve estreito contato com um grande número de animais infectados.
Os epidemiologistas chamam essa situação de “diálogo viral”. O Dr. Barret explica que, no início, quando as infecções humanas se restringem a pequenos surtos esporádicos, estas se parecem com sinais codificados de comunicação de rádio. Ou seja, informações esparsas, pouco claras, mas que, na sequência podem evoluir para uma mensagem muito ameaçadora e, dadas as condições ideais, ocasionar uma pandemia humana.
Os vírus da gripe evoluem rapidamente. Isso ocorre em parte porque dois ou mais agentes gripais podem infectar o mesmo hospedeiro, simultaneamente. Essa condição permite que o material genético seja mesclado, produzindo novas raças, com características diferentes dos originais. A reorganização genética apresenta maior probabilidade de ocorrência quando há diversidade de espécies hospedeiras. Nesse caso, é particularmente preocupante o fato de que o H5N1 já infectou pelo menos 450 diferentes espécies de animais.
Isso posto, os casos esporádicos e individuais de H5N1 afetando humanos acionam um alerta: a transmissão de humano para humano pode, teoricamente, ocorrer em algum momento. Mas mesmo assim, não é possível afirmar que vá acontecer e, se sobrevier, exatamente quando, como e onde.
O que fazer?
O Dr. Dhillon e colaboradores publicaram um texto didático a este respeito, na revista Nature, em 24/2/25. A boa notícia é que existem fórmulas para reduzir a probabilidade de adaptação do H5N1 para humanos, e até mesmo limitar o tamanho da população afetada e a letalidade da gripe aviária. A má notícia é que não bastam ações individuais, posto que governos, empresas e grupos organizados precisarão agir ativamente.
A primeira medida é reduzir a contaminação das aves de criação, impondo regras sanitárias rígidas para evitar infecção do rebanho. Caso este seja infectado, medidas quarentenárias precisam ser adotadas imediatamente, incluindo o sacrifício dos animais e correta destinação dos restos. Em segundo lugar, é necessário evitar ao máximo o contato de aves migratórias com rebanhos, e de aves de criação com outros animais domésticos. O contato com humanos deve ser minimizado e os equipamentos de proteção individual (EPI) adequados devem ser utilizados, sempre que houver contato.
As pessoas devem se vacinar contra gripe. Embora as vacinas atuais não protejam contra o H5N1, evitam que as pessoas fiquem debilitadas, propensas a contrair infecções. E, também, que sejam infectadas por mais de um tipo de vírus, o que promove o intercâmbio de material genético entre os vírus presentes em suas células. As pessoas devem estar atentas a qualquer sintoma de gripe, buscando atendimento médico imediato, para diagnóstico precoce de eventual infecção por H5N1.
Em escala mais ampla, há necessidade de melhorar a nutrição e o saneamento nas populações mais pobres do mundo. A história mostrou que nutrição adequada aumenta a resistência comunitária a novas infecções, e o saneamento apropriado reduz a intensidade e a frequência com que as pessoas são expostas a novos patógenos. Lembrando que, no mundo interconectado de hoje, os problemas de doenças de uma comunidade podem, rapidamente, se alastrar para todas as sociedades.
Finalmente, governos e empresas precisam atuar fortemente na pesquisa científica e no desenvolvimento tecnológico, para que todos os aspectos da biologia, ecologia, genômica, infectividade, ocorrência de mutações e outros temas ligados ao H5N1 sejam estudados e esclarecidos. E, extremamente, importante: é fundamental o desenvolvimento de vacinas para proteção contra o vírus, devendo as mesmas serem permanentemente atualizadas para manter sua efetividade, mesmo com novas mudanças genéticas do vírus.
O autor é engenheiro agrônomo, membro do Conselho Científico Agro Sustentável e da Academia Brasileira de Ciência Agronômica.