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Uma cabeça, duas sentenças



Decio Luiz Gazzoni

                Não é apenas durante catástrofes, como a atual pandemia de Covid-19, que vemos atitudes que afrontam o conhecimento científico, como ocorre no momento com os defensores de cloroquina e ivermectina, cegos e surdos para o consenso científico que claramente demonstrou sua ineficácia no tratamento ou prevenção de uma infecção pelo novo coronavírus. Para eles o que importa são suas crenças ou ideologias, Ciência só atrapalha.

Se examinarmos o que ocorreu ao longo das últimas três décadas, em relação às ferramentas biotecnológicas – que romperam paradigmas e descortinaram um novo mundo da Ciência - verificamos que o comportamento é recorrente, e quase sempre atrelado a ideologias extremadas. A desinformação é a praga do século e a politização da Ciência seu mais nefasto corolário, coortes de terraplanistas e negacionistas se esparram pelo planeta.

Contrapondo-se ao método científico, que impõe comprovação por fatos e números além de qualquer dúvida razoável, resultados que sejam replicáveis usando a mesma sequência metodológica, negacionistas valem-se de um discurso meramente retórico, desprovido de argumentos, lastreado no ataque raivoso a quem consegue demonstrar as teses que defende – porque negacionistas, por definição, nunca conseguem demonstrar faticamente suas hipóteses. Para eles mais vale um vídeo de um anônimo veiculado nas redes sociais que o conjunto de demonstrações que se acumulam em respeitadas revistas científicas. Mesmo porque novamente, por definição, negacionistas e terraplanistas não leem artigos científicos, pela simples razão de que eles demonstram o oposto de suas crenças e dogmas.

 

Biotecnologia

                Vamos ao ponto que quero demonstrar. Ativistas anti-transgênicos na agricultura costumam ser ferozes e irascíveis, não abrem qualquer exceção. Não se sensibilizaram com o Golden Rice, que é uma variedade de arroz biofortificado que pode fornecer até 70% da vitamina A necessária diariamente. Estima-se que, anualmente, 670 mil crianças com menos de cinco anos morram por hipovitaminose A e que, entre os sobreviventes, cerca de 500.000 fiquem cegos pela mesma deficiência vitamínica. Foram 18 anos de batalha até ser obtida a aprovação para uso alimentar em países como Austrália, Nova Zelândia, Canadá e Estados Unidos. Que nem precisam de Golden Rice, hipovitaminose A não é um problema sério de saúde para estes países.

                Porém, os mesmos ativistas que tão enfaticamente buscam barrar avanços biotecnológicos na agricultura, não se manifestam contra avanços igualmente espetaculares na medicina e na farmacologia. O exemplo clássico mais antigo é a produção de insulina por cultura de células - modificadas por ferramentas biotecnológicas - da bactéria Escherichia coli. O gene humano que codifica para insulina foi isolado e recortado por enzimas de restrição e inserido no também isolado plasmídeo da bactéria. O plasmídeo recombinante, contendo o gene humano, foi inserido na célula da bactéria, que passou a produzir insulina. A qual salva milhões de vidas anualmente, e confere qualidade de vida aos portadores de diabetes que são insulino-dependentes.

O caso da insulina é pioneiro, mas, na atualidade, existem inúmeros fármacos e tratamentos personalizados de doenças, baseados em ferramentas biotecnológicas modernas. O mais recentemente aprovado no Brasil é para cura de cegueira em crianças e adultos, quando causada por mutações nas duas cópias do gene RPE65. O medicamento voretigene neparvovec consiste em um vetor (AAV2) contendo o RPE65CDNA com uma sequência modificada, que corrige a mutação, repõe o gene correto, e permite a recuperação significativa da visão.

                Examinando a abordagem conferida aos produtos derivados da biotecnologia, observa-se uma dualidade: a biotecnologia é “ferramenta do demônio” quando aplicada na Agronomia, mas é “do bem”, quando se trata de Medicina – embora, em ambos os casos se trata de salvar vidas, seja por nutrição adequada ou por terapêuticas.

 

Vacinas para a Covid-19

                Como nunca antes na História da Humanidade, estabeleceu-se uma corrida pela obtenção de vacinas que ajudem a debelar a pandemia. São relatadas mais de uma dezena de empreendimentos, envolvendo consórcios entre empresas e parcerias público privadas, valendo-se de diferentes estratégias e plataformas tecnológicas. E é ótimo que assim seja, porque o tempo urge, e a diversidade é conceitualmente interessante para garantir tanto a eficácia de uma ou mais vacinas, quanto a viabilidade sua produção de forma distribuída, facilitando o acesso para os bilhões de cidadãos do mundo.

                O que nos chama a atenção é que ao menos uma dezena destas vacinas sejam baseadas em ferramentas biotecnológicas, sendo minoria os grupos e instituições que usem a abordagem tradicional de atenuação viral. Sem querer esgotar o assunto, listamos a seguir alguns dos projetos em andamento:

Israel Institue for Biological Research: A vacina recombinante VSV-?G-spike resulta em indução rápida e potente de anticorpos neutralizantes contra SARS-CoV-2. Foi testada em hamsters em junho passado, demonstrando alta efetividade contra Covid-19 (1). O spike é aquela proteína na camada externa do vírus, que serve de “chave” para a “fechadura” que permite o ingresso na célula.

Fundação Oswaldo Cruz: A vacina sintética é baseada em biomoléculas ou peptídeos antigênicos das células B e T. Elas contêm pequenas partes de proteínas do vírus SARS-CoV-2 que podem induzir a produção de anticorpos específicos no processo de defesa do corpo. A Bio-Manguinhos / Fiocruz identificou essas biomoléculas em modelo computacional (in silico), que foram produzidas por síntese química e validadas in vitro. Os peptídeos foram acoplados em nanopartículas que funcionam como uma espécie de transportador para o sistema imunológico, ativando a defesa do organismo (2).

Sorrento Therapeutics: Vacina baseada em anticorpos monoclonais, os quais excitam o sistema imunológico, com o objetivo de atacar o vírus. Assim como os anticorpos produzidos pelo sistema imunológico do corpo, essas moléculas produzidas em laboratório têm como alvo um invasor específico, in casu o SARS-CoV-2 (3).

University of Oxford: O adenovírus recombinante para ChAdOx1 nCoV-19 foi produzido com pequenas modificações a partir de uma plataforma de vacinas já existente e operacional. Os vetores de serotipo 5 de adenovírus humano com deficiência de replicação (HAdV5) são veículos comuns para a entrega de genes estranhos em uma gama diversa de células para terapia gênica e vacinas. A grande quantidade de informações sobre biologia, imunologia e segurança do HAdV5 faz desse vírus um candidato ideal para vacinas (4, 5).

Moderna: A equipe de pesquisa de doenças infecciosas do National Institute of Health (NIH) e da Moderna finalizou a sequência do mRNA-1273. O NIAID, parte do NIH, divulgou sua intenção de executar um estudo de Fase 1 usando o mRNA-1273 em resposta à ameaça do coronavírus (6).

Cansinotech: A empresa está desenvolvendo uma vacina recombinante contra o coronavírus, usando um vetor de adenovírus tipo 5 (Ad5-nCoV), co-desenvolvido com o Instituto de Biotecnologia de Pequim, sendo a primeira vacina inovadora contra o coronavírus para COVID-19 que que completou a fase I de testes na China (7).

Novavax: A Novavax criou os candidatos à vacina COVID-19 usando sua própria plataforma de tecnologia de nanopartículas de proteínas recombinantes para gerar antígenos derivados da proteína de pico de coronavírus (S). A Novavax espera utilizar seu adjuvante proprietário Matrix-M com seu candidato a vacina COVID-19 para melhorar as respostas imunes (8).

BioNTech, Pfizer e Fosun Pharma: Dois candidatos a mRNA modificado por nucleosídeo (modRNA) (BNT162a1 e BNT162b2); uma uridina contendo candidato a mRNA (uRNA); e um candidato usando mRNA de amplificação automática (saRNA). O BNT162b1 codifica um antígeno do domínio de ligação ao receptor (RBD) otimizado para SARS-CoV-2, enquanto o BNT162b2 codifica um antígeno otimizado da proteína do pico de SARS-CoV-2 otimizado. Cada formato de mRNA é combinado com uma formulação de nanopartículas lipídicas (LNP). A sequência de pico maior é incluída em dois dos candidatos, enquanto o menor domínio de ligação ao receptor otimizado (RBD) da proteína de pico é incluído nos outros dois candidatos (9).

Inovio: A Inovio demonstrou que os medicamentos de DNA podem ser entregues diretamente nas células do corpo através de um dispositivo inteligente, para produzir com segurança uma resposta imune robusta em ensaios clínicos envolvendo mais de 2.000 pacientes em 7.000 administrações. As vantagens da plataforma de medicamentos para DNA do INOVIO, em uma situação de pandemia como o mundo agora enfrenta com o COVID-19, são a rapidez com que os medicamentos para DNA podem ser projetados e fabricados; a estabilidade dos produtos, que não requerem armazenamento e transporte congelados; e sua resposta imune robusta, bem como perfil favorável de segurança e tolerabilidade.

                São diversas as vantagens auferidas pelo uso de plataformas biotecnológicas para a produção de medicamentos. Fixemo-nos no cronograma da Inovio. Pesquisadores chineses tornaram público o sequenciamento genômico do SARS-Cov-2 em 10/01. Três horas após ter acesso ao sequenciamento, a Inovio havia projetado a vacina INO-4800. Em 13 dias, os testes pré-clínicos estavam sendo executados. No início de março, doses já estavam prontas para serem testadas em diferentes países. Durante uma pandemia, palavras chaves são tempo, segurança, eficácia e escala. O que pode não pode ser obtido sem o recurso às ferramentas biotecnológicas.

 

Concluindo

                Uma cabeça, duas sentenças. A cabeça que condena o uso de OGMs na agricultura, que se recusa a utilizá-los na alimentação, que tenta bani-los dos campos, é a mesma cabeça que assiste com ansiedade a evolução das vacinas obtidas usando exatamente o mesmo ferramental, os mesmos fundamentos teóricos.

Há explicação: a medicina lida com eventos extremos, como o óbito. Pode ser o próprio ativista. Poderia ser sua mãe, seu pai, seu irmão, alguém da família. Um amigo, um conhecido. Então, não se condena uma vacina produzida com ferramentas biotecnológicas a priori. Porém, lastreado por uma renda per capita de US$50.000,00 ou mais, acesso à alimentação não é um problema para um ativista, sua família, amigos ou conhecidos. Os famintos? Ora, se o povo tem fome e não tem pão, que coma brioches. Maria Antonieta (1755-1793), esposa do Rei da França, Louis XVI, pode ser a guru de ativistas anti-biotecnologia na agricultura, o nível de sensibilidade para as agruras dos desvalidos é o mesmo.

 

Referências

1 - https://www.israel21c.org/israeli-covid-19-vaccine-successful-in-hamster-test/

2 - https://portal.fiocruz.br/en/news/covid-19-fiocruz-will-begin-pre-clinical-trials-vaccine

3 - https://www.healthline.com/health-news/heres-exactly-where-were-at-with-vaccines-and-treatments-for-covid-19#Other-treatments

4 - https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)31604-4/fulltext

5 - https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/26458833/

6 - https://www.modernatx.com/modernas-work-potential-vaccine-against-covid-19

7 - http://www.cansinotech.com/homes/article/show/56/153.html

8 - https://ir.novavax.com/news-releases/news-release-details/novavax-initiates-phase-12-clinical-trial-covid-19-vaccine

9 - https://www.pfizer.com/news/press-release/press-release-detail/pfizer_and_biontech_dose_first_participants_in_the_u_s_as_part_of_global_covid_19_mrna_vaccine_development_program

10 - https://www.inovio.com/our-focus-serving-patients/covid-19/

 

O autor é Engenheiro Agrônomo, membro do Conselho Científico Agro Sustentável.

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