
Autores apontam os primeiros registros de cerveja na Europa Neolítica (bit.ly/40jJoYo), algo como 5.000 anos a.C. Escritos mesopotâmicos descreviam rações diárias de cerveja e pão para os trabalhadores, com produção caseira de cerveja vez que assar e fermentar eram vistos como "trabalho de mulher" (bit.ly/3WncDYU).
A migração do lar para a fabricação comercial de cerveja iniciou em, aproximadamente, 2.500 a.C. (bit.ly/42cSh8C), na antiga Mesopotâmia. Os cervejeiros dispunham não apenas de aprovação social, mas da proteção divina da deusa Ninkasi (bit.ly/3PENXYi). Também são encontrados registros milenares de monastérios dedicando-se à produção de cerveja, sendo que um deles, a Weltenburg Abbey, data de 1040 a.C., e produz cerveja até o presente momento.
Matéria prima e maltagem
Diversos cereais, como cevada, trigo, milho, arroz e são usados para produzir cerveja. O tipo de cereal usado afeta o sabor e a cor da cerveja. O cereal mais usado, no mundo ocidental, é a cevada. O trigo possui maior teor de proteína, e pode ser maltado, produzindo cervejas de sabor agradável. O milho adiciona uma doçura suave e neutra à cerveja, sendo utilizado para clarear as lagers americanas. Já o arroz é usado principalmente na Ásia, mas, também, nos EUA, conferindo cor mais clara e um sabor mais delicado, além de permitir a produção de cerveja sem glúten. Outros cereais, como centeio, sorgo, milheto, triticale, aveia, trigo sarraceno e quinoa também são utilizados em alguns países.
Selecionada a matéria prima, é necessário promover a maltagem, que envolve a maceração, germinação e secagem, para obter as enzimas (amilases), que convertem o amido em açúcares, como a maltose, e em polímeros da glicose, como maltotriose e maltodextinas.
O grão recebido na maltaria é analisado para assegurar o atendimento às características necessárias, entre elas a umidade de 13%. Após a limpeza, e atingida umidade adequada, o cereal pode ser armazenado sem alterações por mais de um ano, permitindo abastecer a indústria no período de entressafra. Durante o armazenamento, é importante manter a temperatura da massa de grãos abaixo de 18º C, para evitar o desenvolvimento de insetos, o que também pode exigir o uso de produtos químicos.
Para iniciar a maltagem, os grãos dispostos em um ambiente apropriado, recebem água até cobrir a lâmina de grãos, aumentando a sua umidade de 13 para perto de 50%. Durante o processo de maceração, ocorre uma aeração da massa úmida de grãos, para maximizar o seu crescimento, mantendo-se uma temperatura entre 10 e 15º C. O ar ambiente deve ser ventilado, para remover o excesso de gás carbônico e manter a concentração ideal de oxigênio. Em instalações industriais modernas, os grãos são submersos e drenados por três ciclos, o que demora cerca de 40 horas, até atingir a umidade desejada, e ter início a germinação, sinalizada pelo surgimento das radículas nos grãos.
Durante a germinação, que dura em torno de cinco dias, há a formação de enzimas de malte, que rompem as paredes celulares e modificam o endosperma do grão. Esse processo é altamente exotérmico, o que demanda controle da temperatura, para evitar que o malte queime e se torne inaproveitável. A temperatura é mantida entre 10 e 16 °C por aeração, e a massa de grãos é movimentada mecanicamente, para evitar a formação de bolsas de alta temperatura, mantendo a uniformidade da mesma.
Quando o processo de germinação dos grãos atinge o estágio determinado pelo mestre cervejeiro, ocorre a secagem, que interrompe a germinação. No início, a secagem é efetuada com a mesma temperatura da germinação, para não prejudicar as enzimas. Porém, à medida que a umidade da massa diminui, é possível utilizar secagem forçando ar quente e seco, até que a umidade atinja 5%.
No final da secagem, que é chamada de cura, a temperatura ultrapassa 80º C, para evitar a formação de metiltiometano (DMS), um composto indesejado nas cervejas. O DMS provoca um inconfundível sabor de legumes cozidos, como milho em conserva ou repolho na sua cerveja. Nesse ambiente de alta temperatura, a reação de Maillard ocorre entre açúcares redutores e aminoácidos, criando melanoidinas, que são os compostos que dão cor dourada e sabor característico a diversos alimentos, entre eles a cerveja.
Após a secagem ocorre a torrefação, e diferentes tempos e temperaturas de torrefação são usados para produzir uma diversidade de cores de malte, a partir do mesmo grão. Maltes mais escuros produzirão cervejas mais escuras. Finalizada a torrefação, as raízes que se formaram na germinação são removidas e destinadas a outros usos (como ração animal), os grãos que formam o malte são moídos ou esmagados, visando expor o endosperma, que contém a maioria dos carboidratos e açúcares, permitindo a sua extração durante a brassagem.
Brassagem
Também denominada mosturação, é a etapa que dura uma a duas horas, durante a qual os amidos que foram liberados na malteação são convertidos em açúcares fermentáveis. Os grãos moídos são misturados com água quente (70º C), na tina de mostura, permitindo que as enzimas (amilases) presentes no mosto promovam a sacarificação, que converte o amido em açúcares como monossacarídeos (glicose ou frutose), dissacarídeos (sacarose) ou trissacarídeos (rafinose ou melizitose), porém o principal açúcar obtido é a maltose, composto por duas moléculas de glicose.
Durante a brasagem a temperatura é aumentada em “degraus”, para permitir a atuação de diferentes enzimas, de acordo com o produto que se pretende obter. Por exemplo, com o mosto na faixa de 50º C, ocorre a ativação de proteases, de decompõem proteínas, cuja presença no produto final pode turvar a cerveja. Já a 60° C é otimizada a ação da β-glucanase, que decompõe os β-glucanos, que são gomas presentes no mosto, fazendo com que os açúcares fluam mais livremente.
Temperaturas superiores a 65º C representam o ideal para converter os amidos em açúcar. Mas, existem detalhes a considerar: temperatura próxima a 65º C, favorece a β-amilase, produzindo mais maltotriose, maltose e glicose, que são mais fermentáveis, e que darão origem a uma cerveja com menos corpo e mais álcool. No limite superior, de 70o C, é otimizada a ação da α-amilase, produzindo mais açúcares complexos e dextrinas, que são menos fermentáveis, resultando em uma cerveja mais encorpada e com menos álcool. As variações de duração e pH também afetam a composição de açúcar do mosto resultante da brasagem.
Ao final do processo, a temperatura é aumentada a 75-80º C, para liberar mais amido e reduzir a viscosidade, bem como pode ser adicionada água ao mosto, para extrair mais açucares, após o que o mosto é retirado pelo fundo da tina, separado da fração sólida.
Filtragem e fervura
A filtração é a separação do mosto da parte sólida, normalmente executada em duas etapas. Na primeira delas, o mosto escorre livremente, por gravidade, do recipiente onde foi executada a brassagem. Na segunda fase, o resíduo sólido, contendo os grãos, é enxaguado com água quente. O fundo da tina contém orifícios de pequeno diâmetro, que permitem a passagem do mosto, mas não da massa sólida, que contém os grãos.
Para que seja extraído o máximo de mosto possível, é necessário movimentar a massa sólida, permitindo que o líquido escorra pelos orifícios do fundo. Porém, uma parte da fase líquida ainda é retida na massa sólida, razão pela qual ela é submetida a um filtro -prensa de placas. Aplicada a pressão, o restante do líquido ainda retido na massa sólida é retirado.
Na sequência, promove-se a fervura do mosto, a qual tem como objetivos permitir a ocorrência de reações químicas, esterilizar o mosto, extrair o sabor do lúpulo (que é adicionado antes do início da fervura), finalizar os processos enzimáticos, precipitar as proteínas e concentrar o mosto.
A fervura dura entre 45 e 90 minutos, até que atinja o volume desejado pelo mestre cervejeiro. Durante a fervura os sabores estranhos são eliminados, incluindo o sulfeto de dimetila, que é evaporado.
Ao final da fervura, as partículas sólidas que se encontram em suspensão no mosto lupulado são separadas, em um tanque de decantação ou sedimentação, chamado de Whirlpool, onde o mosto é turbilhonado, formando um redemoinho no centro, para extrair proteínas coaguladas e restos do lúpulo adicionado antes da fervura. Ao girar o mosto dentro do tanque, cria-se uma força centrípeta, forçando os resíduos sólidos para um cone central, que termina no fundo do tanque, de onde os resíduos separados são removidos.
O efeito descrito acima também pode ser obtido através do Hop Back, utilizando um recipiente onde o mosto fervido – ao qual não foi ainda adicionado lúpulo - é colocado ainda quente, seguindo-se a adição de lúpulo. O resultado final é semelhante ao processo anterior, pois os aromas e sabores característicos do lúpulo são, então, transferidos para o mosto.
Mestres cervejeiros experimentados afirmam preferir o Hop Back pois, além de maior extração dos óleos essenciais do lúpulo, também contribui para a preservação dos aromas e sabores, resultando em uma cerveja mais aromática e saborosa.
Em ambos os casos, o mosto, com os sabores do lúpulo incorporados, é resfriado a 20 – 26º C, e segue para a fermentação.
Fermentação
Na preparação para a fermentação o mosto é aerado, e colocado em vasilhames ou cubas, onde recebe a adição de leveduras de culturas puras. As leveduras convertem os açúcares desdobrados do amido, durante a maltagem, em etanol e dióxido de carbono, sendo este o gás que vai borbulhar na cerveja.
A fermentação pode ser realizada em recipientes fechados ou abertos. Existem diferentes métodos de fermentação, conhecidos como a) quente; b) fria; e c) espontânea. A elas estão associadas as leveduras, sendo classificadas de cultura superior (Saccharomyces cerevisiae), usadas em fermentações quentes, um processo mais rápido, normalmente em temperaturas de 15 – 20º C, mas que podem chegar a 24º C; e cultura inferior (S. pastorianus), para processos fermentativos mais lentos, e que possui a particularidade de desdobrar a melibiose, ao contrário da S. cerevisiae. Em ambos os casos, a levedura está bem distribuída no seio do mosto, aglomerando-se e precipitando para o fundo do recipiente, ao término da fermentação.
As cervejas obtidas por fermentação quente costumam ser chamadas de “ale”, e podem ser consumidas em cerca de três semanas após a fermentação, dependendo do mestre cervejeiro, porque, em alguns casos, eles preferem maturação por alguns meses para atingir o sabor desejado.
Na fermentação fria, a temperatura durante o processo é em média, de 10º C, sendo armazenadas por semanas ou meses em baixas temperaturas, sendo chamada de lager. Assim, a diferenciação do tipo de cerveja se dá pela levedura utilizada, pela temperatura de fermentação, e pelo período de armazenamento (maturação) após a fermentação.
A fermentação espontânea é pouco utilizada, restrita a algumas marcas e em alguns países. Sua característica é não haver inoculação de leveduras, sendo a fermentação conduzida em cubas abertas, permitindo que as leveduras presentes no ambiente se estabeleçam no mosto, produzindo a fermentação.
A fermentação quente ou fria pode ocorrer em recipientes abertos ou fechados. Ainda pode haver uma fermentação secundária na cervejaria, barril ou garrafa. Quando se encerra a fermentação, as leveduras e outros sólidos são separados do líquido, que é a cerveja semi-acabada.
Maturação e filtração
Nesta etapa, diferentes abordagens podem ser utilizadas. O método Kräusening preconiza adicionar uma pequena quantidade de mosto ainda em fermentação, em cervejas onde a fermentação já acabou, propiciando condição para uma segunda fermentação, cujo objetivo principal é a formação de gás carbônico, que estará presente na cerveja quando pronta para consumo.
Para o envelhecimento, as cervejas tipo lager são armazenadas em baixa temperatura por 1 a 6 meses, sendo o processo denominado "lagering", que pode ser aplicado também à produção de cerveja tipo ale, promovendo a eliminação de substâncias químicas não desejadas. Em alguns casos, é promovida uma segunda fermentação na própria garrafa destinada a consumo, com o mesmo objetivo de produção de dióxido de carbono que fica dissolvido na cerveja.
A filtração consolida o sabor da cerveja, ao eliminar leveduras e outras substâncias indesejadas, o que poderia levar à formação de substâncias com sabor desagradável. Igualmente, a filtração confere um aspecto mais claro, com aspecto dourado, que é visualmente muito agradável, em especial quando combinado com a espuma na parte superior do copo.
Completada a sequência de fabricação, a cerveja está pronta para consumo, variando a temperatura ideal de acordo com o tipo de cerveja e o clima do local onde está sendo consumida. Salute!
O autor é enólogo, engenheiro agrônomo, pesquisador da Embrapa Soja e membro do Conselho Científico Agro Sustentável e da Academia Brasileira de Ciência Agronômica.