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Prática Medieval



Francisco Graziano Neto

Caiu a área queimada com cana-de-açúcar em São Paulo. A novidade soa sensacional. Adotada desde os primórdios da economia, a colheita com fogo está com dias contados. Sorte do meio ambiente.
São Paulo produz 62% da cana do Brasil. Sua doce lavoura se estende por 4,5 milhões de hectares, área em contínua expansão. Descontando os novos canaviais - a cana recém plantada demora um ano para madurar - a colheita atingiu 3,8 milhões de hectares na última safra. Sobre o período anterior, houve um acréscimo de 548 mil hectares.

Aumentou a colheita, mas reduziu a área queimada em 109 mil hectares. Para quem gosta de comparação, isso corresponde a 155 mil campos de futebol sem labareda. Os números, precisos, foram calculados com imagens de satélite, compilados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Não é difícil. Afinal, as enormes fogueiras são facilmente detectadas do espaço.

Mais cana se produz, menos cana arde. Essa situação, impensável até a pouco, resulta do Protocolo Agroambiental, uma espécie de ajustamento de conduta firmado entre o governo paulista e o setor sucroalcooleiro. Pelo acordo, que recentemente recebeu a adesão dos fornecedores autônomos de cana, os usineiros se comprometem a antecipar o prazo final para a eliminação da queimada. Pela lei paulista, nas áreas mecanizáveis, esse prazo vai até 2021. No Protocolo, vem para 2014.

A lição-de-casa, bem feita, permite projetar, mantida a primeira tendência, que já em 2012 a prática da queima da palha da cana desapareça. Pelo menos nas áreas planas. Nas lavouras em terras inclinadas, onde o corte mecanizado fica impedido, o fogaréu ainda permanecerá mais tempo. Representará, porém, parcela residual da produção. Felizmente.

Há quem, afoito, imagine possível acabar de imediato com as queimadas de cana. Seria excelente, na equação ambiental. Mas na economia agrária, a suposição soa difícil. Sem o fogo a lhe queimar a palha, os canaviais exigem máquinas de colheita. Em 2006, operavam em São Paulo 500 colheitadeiras. Hoje são 1900. Estima-se que, eliminada a prática da queima, 5 mil máquinas de corte estarão trabalhando no campo. Custa tempo e dinheiro.

Haverá, portanto, uma transição. Ela é necessária para a indústria de equipamentos fornecer novas colheitadeiras, cada qual valendo R$ 1,3 milhão. Ademais, se as queimadas desaparecessem do dia para a noite, forte desemprego causaria. Sendo gradual, haverá tempo para realocar a mão-de-obra, tanto a paulista, como aquela migrante.

Nesta última safra, crescendo a mecanização da colheita, 8 mil cortadores de cana perderam seu contrato. Foram, contudo, compensados. Novos 1,5 mil postos de trabalho, mais qualificados, foram gerados na mecanização. Além disso, 6 mil empregos se criaram para atender a expansão da área plantada. O funcionamento de 10 novas usinas resultou noutras 3 mil contratações industriais. Tudo com carteira assinada.

O fim do facão encerra uma triste página na história do trabalho rural. Queima-se cana desde as origens da cultura. Prática medieval, facilita o sulco do arado e limpa o colmo para o corte. A negra sujeira da fuligem afugenta peçonha e marca o rosto do cortador de cana. A dureza do trabalho, antes escravo, massacra o bóia-fria, que chega à exaustão.

O “carvãozinho” da cana, fagulha que chateia as donas-de-casa do interior, emporcalha seus varais de roupa e enegrece seus lares. Finda a queimada, menos água se gastará para lavar quintais e calçadas. Ninguém agüenta mais esse tormento trazido pelo vento.

Será ambiental, certamente, a grande vantagem da eliminação da queimada da cana. Positivos também serão os reflexos na saúde. Apenas nesta safra, a redução nas emissões de material particulado somou 3.900 toneladas - equivalente a 28% daquelas oriundas de veículos à diesel na região metropolitana de São Paulo. Ar limpo.

Do problema, brota solução. O uso da biomassa para a geração de energia esconde uma riqueza energética. Eliminada a queima, estima-se que, até 2020, doze mil megawatts sejam gerados, em território paulista, a partir da palha e do bagaço da cana-de-açúcar. A bioeletricidade vale quase uma hidrelétrica de Itaipu.

São Paulo produz, sozinho, 26% da produção mundial de etanol. Combustível limpo e renovável, sua produção eleva o patamar da atividade rural. A agricultura energética inaugura, certamente, novo ciclo de sucesso no campo. Todavia, face aos dilemas da modernidade, dependerá de cumprir boa agenda ambiental. Expansão sim, queimada não. Etanol é bom, desmatamento, ruim.
Marlon Brando, no auge de sua carreira, protagonizou marcante filme em “Queimada”, simulacro de uma ilha do Caribe dominada, no século XVI, pela economia açucareira. O magnífico ator, disfarçado de preposto inglês, liderou a revolução dos escravos do açúcar contra os colonizadores portugueses. Vitoriosos, logo a população local se apercebeu que haviam caído numa cilada. Libertados da Colônia, caíram no jugo comercial dos ingleses. Revoltados, botaram fogo na ilha.

A queimada da cana precisa, e vai, acabar. O grande defeito da economia sucroalcooleira, porém, reside na concentração do poder. Poucas famílias dominam a fortuna dela extraída. Bom seria se o álcool combustível, que agora ganha o mundo, contribuísse para reduzir a desigualdade social. Etanol verde e justo.

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