Como gestora de amplos territórios e recursos naturais, a agricultura brasileira detém papel de destaque na transição para uma economia sustentável. Todavia, o debate a respeito flui de forma ambivalente no setor, especialmente em razão das diferentes percepções, muita das vezes não alinhadas, dos atores produtivos e a sociedade. O dissenso interno dos discursos acaba por tornar o Brasil presa fácil em uma arena internacional nem sempre bem-intencionada, mas hábil na utilização de critérios ambientais e sociais para os mais diferentes fins, sejam eles comerciais, políticos ou preservacionistas.
Em 17 de novembro de 2021, a Comissão Europeia iniciou a tramitação para a aprovação de uma “Proposta de Regulamento do Parlamento e Conselho Europeu sobre a Disponibilização, no mercado da União, e exportação, pela União, de determinadas commodities e produtos associados com desmatamento e degradação florestal (...)”. A “Proposta de Regulamento”, que conta com amplo apoio social, encontra amparo em uma estratégia europeia de sustentabilidade abrangente, ancorada no “European Green Deal”, na ”2030 EU Biodiversity Strategy” e na “Farm to Fork Strategy”, políticas de combate climático e de desenvolvimento sustentável que buscam alçar a União Europeia a um patamar de liderança global no tema.
O cerne da Proposta de Regulamento reside na proibição de disponibilização, no mercado europeu, ou de exportação, pelos países da União Europeia, de commodities que (a) não sejam livres de desmatamento e que (b) não tenham sido produzidas de acordo com a legislação relevante do país produtor. Em matéria de aplicabilidade, a Proposta de Regulamento vai além das estruturas voluntárias atualmente existentes. Foi inclusive feita a escolha pelo instrumento legislativo do “Regulamento” justamente em razão da sua aplicação direta e de seu caráter vinculante que tem aos países da União Europeia, ensejando uma aplicação homogênea pelos países membros a partir de sua publicação.
São seis as “commodities relevantes” englobadas pela Proposta original: soja, café, cacau, óleo de palma, madeira e carne, além de seus respectivos subprodutos. Nesse contexto, a Proposta tem o potencial de atingir produtos protagonistas de um setor exportador que perfaz quase um terço do PIB do Brasil.
Dentre as exigências apresentadas pela Proposta de Regulamento, tem-se a previsão de realização de auditorias (sistemas de due diligence) que buscarão assegurar que os produtos a serem inseridos no mercado europeu estejam em conformidade com o novo Regulamento. A conformidade em relação a legislação do país produtor deverá ser comprovada com base na disponibilização de “informação adequada e verificável”. A linha de corte para aplicação do critério de “livre de desmatamento” se aplicará para a produção ocorrida a partir de janeiro de 2021, independentemente da legalidade local da abertura de novas áreas para cultivo. Quanto às informações a serem apresentadas para análise da origem dos produtos, destaca-se a necessidade de demonstração de coordenadas geográficas e da geolocalização das áreas utilizadas em toda a cadeia de produção. Além disso, os operadores europeus terão a seu dispor a capacidade de monitoramento de áreas por satélite, disponibilizadas pelos sistemas EGNOS/Galileo e Copernicus.
As conclusões da auditoria em questão (“due diligence statement”) deverão ser apresentadas em um sistema informatizado, contendo as devidas avaliações de risco relativos aos produtos originados e a conclusão de risco negligenciável. A avaliação de risco deverá demonstrar, também, diversos itens com relação ao país de origem, principalmente no que diz respeito (i) ao grau de desmatamento e degradação florestal, (ii) níveis de corrupção, (iii) práticas de falsificação documental e (iv) grau de aplicação – fiscalização/execução - da legislação local. Tratam-se, portanto, de avaliações de risco profundas e relacionadas às práticas e reputação de cada país produtor.
Em 31 de março de 2022, o relator da proposta no Parlamento Europeu apresentou seu relatório, alterando alguns pontos chaves do Regulamento em discussão. Além de aumentar o escopo das commodities relevantes incluindo a borracha, o relator aumenta as áreas protegidas, incluindo além de florestas, regiões de matas com características que incluem o Cerrado brasileiro.
Ainda que o setor agrícola brasileiro apresente louváveis resultados de produção em bases efetivamente sustentáveis, a fiscalização e o cumprimento da legislação ambiental brasileira não são homogêneos no território nacional. Tal circunstância gera obstáculos a serem enfrentados na cadeia produtiva, que, em alguns casos, ainda não possui mecanismos completos para controlar a cadeia de custódia dos produtos, de modo a evitar a mistura desses com aqueles advindos de produções realizadas em áreas irregulares ou inconformes. Há ainda razoável grau de assimetria quanto à proteção verificada em biomas específicos, como o Amazônico e as particularidades do mecanismo de comprovação de manutenção de Reserva Legal em áreas rurais. Dadas as dificuldades ainda existentes nas cadeias logísticas das commodities relevantes, o efeito da Proposta de Regulamento pode vir a ser um congelamento do uso de terras para agricultura no Brasil.
Não obstante, há ainda grande oportunidade para o Brasil no âmbito da Proposta de Regulamento. Aparentemente é possível dialogar com a Comissão Europeia apresentando não só os argumentos favoráveis à nossa agricultura, mas também as comprovações de nossos posicionamentos. A demonstração de dados atuais e históricos, por Estados de origem, das áreas de produção das commodities, além de comprovações de existência de institucionais de controle operacionais são importantes pontos a serem apresentados com relação à classificação de risco-país a ser atribuída ao Brasil.
No que tange à proteção florestal temos que demonstrar o processo histórico de amadurecimento brasileiro, com suas dores, avanços, dificuldades e proposições práticas de soluções para problemas atuais. O Brasil vem caminhando na questão, basta relembrar que nas últimas décadas discutimos e aprovamos um novo Código Florestal (Lei no. 12.651/12), submetemos questões críticas relacionadas à proteção prevista no Código ao Supremo Tribunal Federal, e institucionalizamos, recentemente, instrumentos econômicos de incentivo à preservação, como os pagamentos por serviços ambientais (Lei no. 14.119/21) e a Cédula de Produto Rural Verde (regulamentada pelo Decreto no. 10.828/21). Em paralelo temos também iniciativas legislativas e operacionais de Governo relevantes em andamento nas searas da regularização fundiária (Decreto nº 10.592 que visa à regularização fundiária das áreas rurais situadas em terras da União, no âmbito da Amazônia Legal, e em terras do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra, por meio de alienação e concessão de direito real de uso de imóveis), e na recomposição, recuperação, regeneração e compensação florestal em andamento através dos processos de regularização do CAR – Cadastro Ambiental Rural, cujo panorama objetivo e realista devem compor uma apresentação efetiva dos esforços de custódia da sociedade brasileira sobre sua cobertura florestal. As eventuais críticas que o país vem sofrendo não devem paralisar nem a autocrítica necessária às nossas iniciativas, para implementação de melhorias internas, e nem a adoção de uma postura externa consistente com os avanços que buscamos atualmente implementar para maior pacificação do tema.
A precisa e desapaixonada apresentação da experiência local de combate ao desmatamento e preservação, com suas diferenças e dificuldades regionais devidamente demonstradas, é uma informação importante não apenas para contribuir ao esclarecimento do contexto brasileiro, uma realidade distante à Comissão e ao Parlamento Europeu. Serve, também, ao propósito de demonstrar o quanto a inclusão e participação da adequação da produção é mais eficiente que o simples boicote. Ademais, a ausência de incentivos aos produtores na proposta europeia, é uma falha que deve ser corrigida, sob o risco de se fazer tábula rasa dos produtores que se empenham em uma atuação exemplar. A construção deste espaço de negociação para a existência de maior entendimento e possíveis incentivos passa, portanto, por um trabalho árduo de reconhecimentos da necessidade de ações construtivas por parte dos dois lados.
A União Europeia enfrenta atualmente uma dura realidade, sofrendo as consequências da guerra perpetrada pela Rússia na Ucrânia, inclusive de potenciais crises alimentares além dos impactos conhecidos no fornecimento de gás ao bloco. Este contexto pode permitir um maior equilíbrio nas mesas de negociações, uma vez que a União Europeia precisará de novas parcerias comerciais. Neste sentido, o acordo com o Mercosul pode desempenhar um papel importante, servindo de espaço mais amplo para este debate acerca da proteção ambiental no Brasil.
O momento para o engajamento neste debate público é cada vez mais curto. A França, na presidência atual da União Europeia, buscar chegar a um consenso (o chamado general approach) no dia 28 de junho de 2022, data da reunião do Conselho do Meio-Ambiente, em que se reunirão todos os chefes dos poderes executivos da União Europeia.
O caminho informativo, de comunicação racional e alinhamento interno, é essencial para que o Brasil passe a adotar posição de defesa uníssona de seus interesses no âmbito internacional. A União Europeia, avançando sobre o tema com forte apoio popular, alinhamento estratégico estruturado e apoiada por uma sofisticada e poderosa burocracia, representa um desafio gigantesco à agricultura brasileira. Cabe aos setores afetados e ao Brasil como um tudo, por sua vez, encarar as medidas de forma racional e coerente, em linha com o papel de custodiante de parcela relevante das florestas e biodiversidade globais que detém, não abrindo mão de canais de discussão de eventuais violações aos preceitos internacionais de proteção ao comércio exterior, mas também explorando a sistemática apresentada pelos europeus, buscando, em todas as frentes, o diálogo e a racionalidade.
*Luis Felipe Aguiar Andrade e Ana Laura Ramires são advogados da área agrícola do Veirano Advogados e Bruno Galvão, advogado do escritório alemão Blomstein