
Na atualidade, cerca de um terço da produção mundial de leite destina-se à fabricação de queijos, estimando-se haver mais de 1.000 tipos diferentes, em escala planetária.
Reza a história que pastores nômades armazenavam leite em recipientes feitos de estômagos de ovelhas e cabras. O interior do recipiente continha ácido láctico e bactérias, que redundavam na fermentação e coagulação do leite, como conta Sandor Katz, no livro A arte da fermentação (bit.ly/3PAwYGz). O resultado seria um produto similar ao iogurte que, por agitação durante a caminhada da caravana, separava a coalhada do soro. A parte sólida seria o queijo, constituído pela principal proteína do leite, a caseína, e um determinado teor de gordura. As proteínas do soro, outras proteínas principais do leite e lactose são todas removidas no soro do queijo. Já David Asher, no livro The art of natural cheesemaker, relata uma variante, indicando a origem do queijo na falta de higiene dos baldes de leite nas ordenhas de países europeus, que continham as bactérias que redundavam na transformação do leite em queijo (bit.ly/42zGq4P)
No livro Global cheesemaking technology (bit.ly/3WinDqw), Paul Kindsted lembra que as primeiras ferramentas para fazer queijo foram encontradas, em achados arqueológicos, por toda a Europa, algumas datando da Idade do Bronze (3.000 a 1.000 anos a.C.). Ele cita que cestas eram usadas para separar a coalhada do queijo, mas conforme a tecnologia avançava, os moldes de queijo eram de madeira ou cerâmica. A coalhada era colocada no molde, tampado, colocando-se pressão sobre a tampa, para separar o soro, que saía pelos furos no molde. Quanto mais soro era drenado, menos umidade era retida no queijo, que se tornava mais rijo e firme.
A matéria prima
Os queijos mais conhecidos provêm de leite de vacas, cabras, ovelhas ou búfalas, embora, em teoria, o queijo possa ser feito do leite de qualquer mamífero. Alguns queijos podem ser deliberadamente deixados para fermentar a partir de bactérias já presentes no leite, ou no ambiente. Essa abordagem geralmente leva a um produto menos consistente, mas que é valorizado em um nicho de mercado.
O processo de produção pode iniciar com leite cru ou pasteurizado. A pasteurização é efetuada em trocadores de calor, podendo ser na temperatura de 72 a 75o C por 15 segundos, ou 65o C por 30 min. O processo objetiva eliminar microrganismos indesejado, especialmente para prevenir a propagação de doenças, cujos agentes podem estar presentes no leite. A ausência de pasteurização também pode ocasionar problemas nos queijos, como, por exemplo, a presença da bactéria Clostridium tyrobutyricium, que causa estufamento tardio em vários tipos de queijos duros maturados, o que não é bem aceito no mercado.
A contaminação bacteriana pode ser controlada com boas práticas higiênicas e com a pasteurização. De acordo com a legislação brasileira, é permitido o uso de leite cru para a produção de queijo, exigindo maturação por um período mínimo de 60 dias, a temperaturas superiores a 5o C.
Entrementes, o queijo produzido a partir de leite pasteurizado apresenta sabor e aroma menos intensos e maturação mais lenta, devido às modificações ocasionadas pelo choque térmico, sendo as principais a inativação de enzimas naturais do leite (lipases e proteases), da microbiota endógena e a desnaturação de proteínas. Veja pormenores do uso de leite cru para a produção de queijos em bit.ly/40EL7cc.
Acidificação
Em alguns casos, pode haver acidificação pela adição de ácido lático.
De acordo com Walstra e colaboradores (bit.ly/40i1f1D), a acidificação permite controlar o desenvolvimento de bactérias indesejadas, sejam elas patogênicas ou que possam conferir características não desejadas ao queijo. Também atua para melhorar a coagulação, auxilia na solubilização de fosfato de cálcio, que modula a textura do queijo. Ademais, sua ação se manifesta na separação do soro, a sinérese, e na atividade de enzimas que agem na maturação do queijo.
Antigamente, a acidificação era realizada com microrganismos já presentes no leite, e este processo ainda é usado em alguns locais, para alguns tipos de queijos. Como a microbiota varia muito conforme as condições ambientes, do rebanho e do manejo, é difícil manter uma consistência nos queijos produzidos.
Dessa maneira, outras técnicas são empregadas. Uma delas é a adição de fermentos liofilizados, sendo os mais utilizados aqueles pertencentes às seguintes categorias: a) mesófilos homofermentativos, indicados para os queijos com baixa temperatura de cozimento, de massa fechada e pouco aroma; b) mesofílicos heterofermentativos, indicadas para queijos de massa aberta, que produzem gás carbônico e aroma; e c) termofílicos, compostos por fermentos indicados para queijos de massa cozida ou semi-cozida. Normalmente os fermentos pertencem ao gênero Lactobacillus, mas outros gêneros podem estar presentes, dependendo do tipo de queijo desejado, como Diacetylactis, Leuconostoc e Streptococcus, com espécies e mesmo subespécies bem definidas.
Outra técnica, comum na produção de queijos duros, é a utilização do soro da fabricação do queijo, que é deixado fermentar para reutilização posterior.
Coagulação
Para a coagulação, o leite é colocado em um tanque, a uma temperatura adequada, que depende do fermento e das enzimas do coalho. O fermento lácteo mais usado desenvolve-se bem a uma temperatura de 20 a 25o C, enquanto as enzimas do coalho, responsáveis pela coagulação do leite, atingem sua eficiência ótima a 40 a 42o C. Na prática, busca-se um meio termo entre as duas exigências, sendo a temperatura de coagulação mantida entre 32 e 35o C.
O coalho utilizado na fabricação de queijos é obtido do quarto estômago do bovino adulto ou de bezerros, sendo composto principalmente de duas enzimas que desdobram proteínas (proteinases). Uma delas é a quimosina, altamente específica para a quebra de ligações da caseína, portanto de maior interesse; a outra é a pepsina, menos específica, sendo mais proteolítica, conferindo um gosto amargo aos queijos. Quando o animal envelhece, a secreção de quimosina diminui, enquanto a de pepsina aumenta, devido ao cessamento da amamentação e o consumo de outros alimentos.
Culturas lácteas são adicionadas junto a enzimas coagulantes, como o coalho, o que promove a transformação do leite em coalhada e soro, juntamente com cloreto de cálcio, usado para repor o cálcio insolubilizado durante a pasteurização, aumentando a firmeza da coalhada e reduzindo o tempo de coagulação. Outros ingredientes podem ser adicionados, como condimentos, que variam de acordo com o tipo de queijo que se pretende produzir.
Na coagulação inicia-se a diferenciação entre os tipos de queijo, assim as culturas de bactérias são selecionadas para dar ao queijo suas características específicas. O livro do prof. Fox e equipe (Fundamentals of Cheese Science) identifica três grandes grupos de queijo, diferenciados pelo método de coagulação do leite: a) coagulação enzimática, com 75% do total; b) coagulação ácida ou lática do leite; e c) coagulação por aquecimento na presença de um ácido ou um sal (bit.ly/4g2zkbO)
A consistência da coalhada varia conforme o tipo de queijo desejado, sendo esse um ponto crucial na definição de sua textura final. Bactérias que produzem apenas ácido lático durante a fermentação são homofermentativas; aquelas que produzem ácido lático e também outros compostos como dióxido de carbono, álcool, aldeídos e cetonas são heterofermentativas.
Bactérias homofermentativas são utilizadas para produzir queijos como o Cheddar, onde um sabor limpo e ácido é necessário. Já para o Emmental, são usadas bactérias heterofermentativas que geram sabores frutados característicos. Também resulta na formação de bolhas de gás carbônico no seio da massa, que, ao final, produzem os olhos ou buracos no interior do queijo. No caso de queijos curados com “mofo”, como Stilton, Roquefort ou Camembert, esporos de fungos podem ser adicionados ao leite no tanque de queijo ou, posteriormente, direto na coalhada do queijo.
Quanto maior o teor de proteínas do leite tanto mais eficiente será a sua coagulação. O tempo de coagulação será menor com maior concentração de enzimas. Uma vez que ácido lático suficiente tenha sido obtido, com o meio apresentando pH próximo a 4,6, a caseína - que é a proteína encontrada em maior teor no leite – coagula, dando origem a uma massa que retém a gordura e a fase aquosa. O processo demora entre 30 e 40 minutos. O coalho contém a enzima quimosina que converte κ-caseína em para-κ-caseinato, um sal que é o principal componente da coalhada de queijo; e glicomacropeptídeo, que é perdido no soro do queijo. À medida que a coalhada é formada, a gordura do leite fica presa em uma matriz de caseína.
Sinérese ou dessoaramento
O soro de leite é a porção aquosa que se separa da massa durante a fabricação convencional de queijos, a qual retém cerca de 55% dos nutrientes do leite. Aproximadamente 85 a 90% do volume de leite utilizado na fabricação de queijos resulta em soro, que contém grande parte dos sólidos representados por proteínas, sais minerais, vitaminas e lactose. Aproximadamente 75% das proteínas do leite são aproveitadas em queijos obtidos por coagulação enzimática, o restante é perdido no soro, conforme o prof. Fox (bit.ly/4g2zkbO).
Assim que a coalhada de queijo for considerada pronta, o soro deve ser separado da massa. Por ser um meio nutritivo e contendo microrganismos, para evitar alterações indesejadas, é necessário remover a maior parte da água (soro) do leite do queijo e, fazendo uma desidratação parcial da coalhada.
Existem várias maneiras de separar a coalhada do soro, sendo a mais comum a separação através de corte e pressão. Porém existem outros processos, como o utilizado na produção de Cheddar, em que a coalhada é cortada em cubos pequenos e a temperatura é elevada para aproximadamente 39 °C, para promover a sinérese. A coalhada e o soro do Cheddar são transferidos do tanque de queijo para uma mesa de resfriamento, composta por telas que permitem que o soro escorra, retendo a coalhada. A coalhada é cortada usando facas longas e cegas, sendo empilhada, cortada e virada para promover a liberação do soro.
Ao contrário do Cheddar, o Camembert requer um tratamento mais suave da coalhada, cuidadosamente transferida para aros de queijo, sendo o soro drenado da coalhada por gravidade. A coalhada de queijo é então removida dos aros para ser salgada por imersão em uma solução saturada de sal. A absorção de sal impede o crescimento de bactérias, como no caso do Cheddar. Se esporos de mofo branco não foram adicionados ao leite do queijo, ele é pulverizado no queijo, usando uma suspensão de esporos de mofo em água, ou mergulhando o queijo em um banho contendo esporos de, por exemplo, Penicillium candida.
Salga
O salgamento pode ser executado por sua adição no leite, na massa, mergulho em salmoura e a seco, em concentrações que variam, normalmente, entre 0,5 e 2,5%. Em alguns casos, o valor pode atingir 5-8%, como nos queijos do tipo feta.
A adição de sal possui diversos objetivos. O primeiro deles é realçar o sabor, uma vez que os lipídios e a caseína (principal proteína do leite) são relativamente insípidos. Também atua como modulador e atenuante de outros componentes do sabor, como o do ácido lático ou mesmo de derivados de compostos gordurosos, obtidos em queijos mofados. A presença do sal permite controlar a atividade microbiana, selecionando os microrganismos que se deseja que atuem ao longo do processo de produção do queijo. Normalmente a salga é efetuada quando o nível de fermentação adequado é atingido, para evitar inibição do fermento
O sal também auxilia alguns processos na produção de queijos, como a formação da casca, pelo contato com o ar e desidratação parcial da superfície exposta. Auxilia na sinérese da massa, auxiliando na separação e expulsão do soro, reduzindo a umidade da massa. Favorece o controle da atividade enzimática durante a maturação, pois enzimas que atuam na decomposição de gorduras e proteínas são favorecidas pela presença do cloreto de sódio.
Dependendo de seu tipo, completada a separação do soro, o queijo é enformado em diferentes tamanhos, de acordo com a finalidade a que se destina, para ingressar no processo de maturação, antes do consumo final.
Maturação
Após o processo inicial de fabricação do queijo, ocorre a maturação, que define o sabor e a textura do queijo. A duração depende do tipo de queijo e da qualidade desejada, e normalmente varia de um mês a dois ou mais anos.
A partir da década de 1970, a análise química do sabor do queijo tornou possível replicar aspectos do amadurecimento do queijo por enzimas adicionadas. Isso resultou em queijo modificado por enzimas, uma preparação de sabor que fornece sabores exagerados de queijo, produzida em uma fração do tempo (bit.ly/4fZXeVw).
A maturação é influenciada por uma série de fatores, sendo o processo enzimático o mais crucial para todos os queijos, embora as bactérias desempenhem um papel central em muitas variedades. Esses fatores contribuem para as três reações primárias que definem o amadurecimento do queijo: glicólise, proteólise e lipólise. No decorrer da maturação, a temperatura e a umidade relativa são cuidadosamente controladas, permitindo a atuação dos fungos de superfície e mesmo do interior do queijo.
Queijos amadurecidos por mofo completam o processo mais rapidamente do que queijos duros, em semanas, ao contrário dos meses ou anos. A explicação é que os fungos usados são mais ativos bioquimicamente do que as bactérias iniciais. Alguns queijos são amadurecidos por mofos na superfície, como Camembert e Brie; outros são amadurecidos internamente, como Stilton.
O amadurecimento da superfície de alguns queijos, como o queijo Saint-Nectaire, também pode ser influenciado por leveduras que contribuem com sabor e textura da camada. Em outros são permitidos crescimentos bacterianos na superfície, que dão cores e aparências características. O crescimento de Brevibacterium linens, por exemplo, cria uma camada laranja nos queijos.
Já o queijo Emmental tem um sabor mais doce devido à prolina, e os buracos redondos nele presentes, característicos dos queijos suíços e holandês, são chamados de olhos, sendo bolhas de dióxido de carbono produzidas por bactérias no queijo. Nos queijos suíços, os olhos são derivados de bactérias do ácido propiônico, em especial Propionibacterium freudenreichii. Em queijos do tipo holandês, o CO2 que forma os olhos resulta da metabolização do citrato por cepas de Lactococcus spp.
O processo de maturação do queijo afeta o sabor do produto final. Se o produto não for maturado, o queijo resultante tem pouco ou nenhum sabor e, portanto, todos os queijos são maturados, exceto os queijos frescos. Diferentes fatores definem o sabor do queijo, incluindo caseína, gordura, salmoura e muitos outros elementos. A salmoura, por exemplo, se mistura com a saliva, levando o sabor do queijo às papilas gustativas e determinando a umidade do queijo.
O autor é engenheiro agrônomo, pesquisador da Embrapa, membro do Conselho Científico Agro Sustentável e da Academia Brasileira de Ciência Agronômica.