A tragédia do RS e os contratos à luz da Imprevisão Contratual
Os reflexos jurídicos que virão após a tragédia ocorrida no Rio Grande do Sul
Izner Hanna Garcia
As imagens da tragédia ocorridas no Rio Grande do Sul são eloquentes por si. A catástrofe extrapolou qualquer proporção anterior vista ou imaginada. Não se trata de uma inundação em uma área restrita mas um desastre que abrange grande parte do Estado e da população gaúcha.
A dor humana da perda de vidas é o fato premente e irremediável.
Infelizmente, a esta primeira dor restará ainda muitos problemas, de vários matizes. Em primeiro plano, logicamente, haverá a questão logística e estrutural de recuperação ou realocação de populações inteiras que tiveram suas casas destruídas, pontes para se refazer, estradas, escolas, etc. e tantos outros etcs.
No entanto, assistindo vídeos feitos por drones (seja em Porto Alegre ou outras cidades) vê-se regiões totalmente submersas. Além da imagem que impressiona deve-se refletir que ali haviam casas, lojas, escritórios, etc..
Quando as águas abaixarem o que restará?
Uma loja, por exemplo, que vendia computadores e produtos de informática e que foi arrasada pela enchente, perdendo seu estoque e todos seus bens. Pensemos nesta situação. O que acontecerá com o proprietário? Digamos que tenha 3 funcionários. Digamos que pague aluguel. Digamos que tenha um empréstimo em um banco para capital de giro e que vinha pagando com seu comércio?
Este comerciante conseguirá pagar o aluguel no mês que vem? Vai conseguir manter seus funcionários? Se os despedir será sem justa causa com os encargos todos? O empréstimo bancário será adimplido? Conseguirá refazer seu negócio, repor seu estoque e recomeçar? Suas obrigações pessoais, que certamente auferia de seu comércio, poderão ser assumidas? Seu filho poderá continuar na escola particular? O carro financiado poderá ser pago? O condomínio de seu prédio?
A tragédia que estamos assistindo é somente a primeira onda. Nos meses subsequentes as consequências, já silenciosas e sem ‘filmagens de drones”, irão se desenrolar em uma sucessão em cadeia de sofrimentos.
Tal situação será inevitável. E se multiplicará por centenas de milhares de situações, em menor ou maior grau. A cadeia sócio-econômica, via de um desastre ‘natural’ totalmente imprevisto e imprevisível, sofreu uma secção que trará grandes problemas.
Estes problemas, que são os fatos do mundo, certamente irão terminar nas cortes judiciais, colocadas à apreciação da tutela jurisdicional.
Qual será a, digamos assim, ‘visão’ que terá o Poder Judiciário da questão?
Pact sunt servanda (acordos devem ser mantidos) é o princípio basilar das relações contratuais e econômicas em uma sociedade. Sem o respeito às obrigações consensualmente assumidas o arcabouço jurídico e financeiro de uma sociedade simplesmente ruí sob si mesmo.
Todavia há exceções.
O princípio do pact sunt servanda ao longo da evolução da contratualística foi mitigado pelo conceito maior de equilíbrio contratual. A obrigação de se cumprir o prometido, em contratos comutativos e cuja execução se dá diferida no tempo, deve ser analisada à luz da proporção das obrigações e deveres.
Nesta seara se construíram o Instituto da Lesão dos Contratos e da Imprevisão dos Contratos que o Código Civil de 2002 trouxe como princípios regulados pelo Direito dos Contratos, como os artigos 157, 317, 422 e 478.
No caso presente, da tragédia do Rio Grande do Sul, certamente estamos diante de um fato imprevisto e imprevisível quando centenas de milhares de contratos foram firmados e as partes obrigaram-se mutuamente. Este fato imprevisto e imprevisível ocorreu sem intervenção das partes, sem culpa. E este fato gerou uma situação em que a obrigação assumida termina impossível ser cumprida sem a ruína da parte.
Vamos novamente ao exemplo da loja de computadores.
Este comerciante que tem um contrato de aluguel. À luz do pact sunt servanda deverá pagar o aluguel já no próximo mês. Deverá pagar os salários dos funcionários. Deverá pagar a parcela do empréstimo bancário. Deverá pagar as faturas de compra de estoque. Deverá pagar a conta de energia elétrica. Os impostos de sua atividade.
Mas sua loja, o meio mesmo que gerava tudo isso, acabou. Simplesmente.
O que fazer como operador do direito?
Fechar os olhos à realidade e dizer em alto e bom som: “está aqui assinado, livremente assumidas suas obrigações. Pague”.
Seria isso?
Creio que a resposta obvia-se.
A aplicação da Imprevisão Contratual deverá ser o “rumo” a ser adotado. Além de ser medida de Justiça social é matéria regulada pelo Código Civil.
Os Tribunais já enfrentaram esta situação na Pandemia de Covid como, por exemplo, o V. Acórdão do STJ onde se decidiu:
“...Nos contratos empresariais deve ser conferido especial prestígio aos princípios da liberdade contratual e do pacta sunt servanda, diretrizes positivadas no art. 421, caput, e 421-A do Código Civil, incluídas pela Lei nº 13.874/2019.4. Nada obstante, o próprio diploma legal consolidou hipóteses de revisão e resolução dos contratos ( 317, 478, 479 e 480 do CC). Com amparo doutrinário, verifica-se que o art. 317 configura cláusula geral de revisão da prestação contratual e que a interpretação sistêmica e teleológica dos arts. 478, 479 e 480 autorizam também a revisão judicial do pactuado.5. A Teoria da Imprevisão (art. 317 do CC), de matriz francesa, exige a comprovação dos seguintes requisitos: (I) obrigação a ser adimplida em momento posterior ao de sua origem; (II) superveniência de evento imprevisível; (III) que acarrete desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução. A pedido da parte, o juiz poderá corrigir o valor da prestação, de modo a assegurar, quanto possível, o seu valor real...” (in STJ - REsp: 2032878 GO 2022/0324884-3, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 18/04/2023, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 20/04/2023
O desastre ocorrido no Rio Grande do Sul é caso perfeito à aplicação da teoria da Imprevisão Contratual e, ao contrário de vulnerar a natureza do pacta sunt servanda justamente ao inverso consolida o exercício da legalidade na forma e letra do referido artigo 317 e outros aplicáveis que, como bem está expresso no V. Acórdão, a interpretação sistêmica e teleológica dos arts. 478, 479 e 480 combinados com o artigo 317 trará o reequilíbrio necessário às relações contratuais.
Izner Hanna Garcia, advogado, pós graduado FGV em Direito da Empresa, autor de Revisão dos Contratos no Novo Código Civl, entre outros, ex Professor de Processo Civil e Direito Econômico na Instituição Moura Lacerda
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