Quando se trata de buscar uma justificativa ética para o direito dos ricos à sua riqueza, ainda hoje, não raro, se recorre a dois pensadores dos primórdios do capitalismo. São eles: John Locke e Adam Smith. Na visão de Locke, a terra e tudo o que há nela pertence à humanidade. Todavia, entende ser legitima a propriedade privada desde que aquilo que se possui não impeça que sobre “suficiente e da mesma qualidade” para os outros. Também argumenta, em aparente contradição, que a propriedade não igualitária da terra se justifica quando os mais desvalidos estão em melhor situação do que estariam senão tivessem reconhecido legitimidade nessa desigualdade. Já Adam Smith destaca que os ricos não privam os pobres de sua parte da riqueza mundial. Segundo ele, pelo contrário, os ricos, numa espécie de atuação da “mão invisível” do mercado, estendem a sua riqueza a toda a economia, “repartindo” com os pobres o resultado do seu trabalho.
Nem Locke e nem Smith apresentam argumentos consistentes para justificar o uso desigual da atmosfera entre nações ricas e pobres, por exemplo. Hoje, mais que justificativa técnica, precisamos é de justificativa ética para o uso que fazemos da atmosfera terrestre. Também nada é mais indicativo da necessidade de os seres humanos atuarem (e pensarem) globalmente que a atmosfera; que é única e “não reconhece” fronteiras políticas. Especialmente, depois que surgiram evidências científicas de que a atividade humana está mudando o clima do planeta. E por atividade humana entenda-se uma maior parcela de responsabilidade das nações ricas, em decorrência de muitas delas terem alcançado o seu desenvolvimento econômico às custas de elevadas taxas de emissão de gases causadores do efeito estufa.
O exposto nos obriga a pensar diferente sobre a “nossa ética”. Não podemos mais ver a atmosfera e os oceanos como recursos ilimitados; com capacidade de absorver indefinidamente o lixo do planeta. As conseqüências da mudança do clima, com uma maior freqüência de eventos climáticos extremos, migração de doenças tropicais para regiões temperadas, elevação do nível médio dos mares, com capacidade de submergir nações inteiras e áreas costeiras de diversos países, redesenhando o mapa mundial, se configuram como “verdadeiras armas de destruição em massa”. Isso reforça a necessidade de uma posição contrária aos cépticos do aquecimento global, que consideram mais barato pagar os custos da adaptação a um “novo” clima global que cortar emissões de CO2 de origem fóssil, por exemplo. E se não necessitávamos de justificativa técnica, tampouco se faz necessário qualquer justificativa econômica. Reitera-se que precisamos mesmo é construir uma justificativa ética para lidarmos de forma mais adequada com o tema da mudança do clima.
Em filosofia política, costuma-se seguir dois princípios para construção de justificativas: o histórico e o de um tempo concreto. Pelo primeiro, busca-se resgatar a história e seus determinantes para o entendimento de como se chegou a uma dada situação. Já pelo segundo, analisa-se o momento, independentemente dos acontecimentos precedentes e sua legitimidade. No caso do uso da atmosfera (especificamente na emissão de gases causadores de efeito estufa), independentemente do princípio considerado, pode-se constatar que as nações ricas emitiram no passado (e continuam emitindo) muito mais gases de estufa que as nações pobres e em desenvolvimento. Não havendo, nesse caso, nem eqüidade e nem justiça no uso da atmosfera, vista como um bem comum da humanidade. È inadmissível que os ricos tenham mais que a sua parte justa da capacidade finita da atmosfera em absorver os gases responsáveis pelo aquecimento global. Não é justo e nem ético porque, diante do caráter de finitude da atmosfera, as nações ricas, agindo como no passado, não deixam possibilidade de uso da atmosfera (suficiente e de mesma qualidade) para o desenvolvimento econômico das nações pobres. Tampouco se pode considerar que o desenvolvimento econômico dos ricos (às custas da atmosfera) é estendido plenamente para fora das suas fronteiras. Portanto, mesmo que não aceitem, as nações desenvolvidas devem ao resto do mundo a “limpeza” da atmosfera.
Cabe indagar: que seria uma proposta justa para o uso da atmosfera? Possivelmente, uma parte igual para todos. E como viabilizar uma proposta “quase” utópica como essa? Na visão de Peter Singer, filósofo australiano, especialista em ética e professor da Universidade de Princeton (USA), expressa no livro “One World”, via uma parte igual per capita, tomando-se como referência as projeções de população por país (ano 2050, por exemplo) e a definição (quantificação) da capacidade de absorção desses gases pela atmosfera. Para sua operacionalização, sem comprometimento da atividade econômica (PIB per capita) e oportunizar o desenvolvimento econômico às nações pobres, há necessidade de conjugação do mecanismo do comércio de emissões e limitações na soberania das nações, no que diz respeito ao uso da atmosfera.