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O Trabalho da Morte


Rutinaldo Miranda Batista Júnior
A velhinha tinha mais de um século. Precisamente cento e três anos, cinco meses, dois dias e nove horas. E quando se chega a essa idade, não importa mais de que morreu. Vai ser sempre de “causas naturais”. Uma maneira muito elegante de dizer que o velho morreu mesmo foi de velhice. Já que depois dos oitenta, todo dia é lucro.
Mas não pense que é fácil para mim. Nessas horas, ninguém está preparado. E essa velhinha era daquelas que gostava de dizer que não tinha medo da minha presença. Só que quando eu fui buscar... Bem foi aquele vexame de sempre. Ela sentiu um arrepio na espinha, logo quando entrei no quarto. E depois que me viu, arregalou bem os olhos.
- Então você vai me levar agora?
Taí uma coisa que acontece sempre. Eu sou a Morte e você está morrendo. Logo, não é tão difícil adivinhar o que vim fazer. Certamente não vim perguntar se vai chover. Mas nessas horas, eu respiro fundo eu tento ser educada.
Digo somente o básico.
- Eu vim te buscar.
- Não! Eu sou tão...
Aí parou porque sabia que não ia colar.  E eu completei a frase:
- Nova???
- Não, é que eu sou tão... tão...
Dei mais alguns segundos, para ver se ela encontrava uma boa razão. Mas estava mesmo difícil.
- Tão o quê, Dona Inês?
- É que eu sou tão...
Emendei a frase:
- Tão...
- É que eu sou tão... eu sou tão gente boa!
- Ah, tá. Lamento dizer que as pessoas boas também morrem cedo.
E como sempre, tentou faturar mais um tempinho:
- Não poderia vir só daqui a dois dias?
- Não.
- Mas dois dias somente?
Tirei a calculadora do bolso e fiz as contas.
- A senhora já viveu 37.779 dias!
- Pois é. Arredonde a conta pra 37.780 e me dê um diazinho a mais.
Eu já estava ficando nervosa:
- Não!!!
- Calma. Não queria lhe deixar chateada.
- É que a senhora está atrapalhando o meu trabalho.
- Tudo bem. Mas antes me responde uma coisa.
- O que é?
- Pra onde eu vou?
E apontou com o dedo:
- Pro andar de cima ou pro de baixo?
Então, abri um sorriso. Porque nessas horas é que a Morte sorri.
- Não sei. Só vai depender da Senhora. Eu faço apenas a sua passagem.

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