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O “matemático” Jorge Luis Borges



Gilberto R. Cunha

Um dos contos mais célebres de Jorge Luis Borges é El Aleph. Nele sobressai-se a temática do fantástico. Porém, por detrás do séqüito que cultua a memória de Beatriz Viterbo, efetivamente, mais que elementos místicos, se salienta o domínio de Borges (autor-narrador-personagem) da obra e vida de Dante Alighieri e de conceitos matemáticos que marcaram o início do século 20.

Há quem enxergue El Aleph, apesar das divergências, como uma mera paródia da Divina Comédia, onde Borges seria Dante e Beatriz Viterbo nada mais que Beatrice Portinari (que se mostrou tão desdenhosa do poeta florentino como a argentina do autor). O outro personagem principal do conto, Carlos Argentino Daneri (primo-irmão, talvez amante de Beatriz e mau escritor), pode ser visto como uma espécie de Dante e ao mesmo tempo de Virgílio. O próprio sobrenome Daneri deixa margem para ser lido como uma abreviatura de Dante Alighieri (Dan + eri).

No embate entre um Borges resignado a venerar a amada morta e a ânsia pela busca de glórias literárias do mau escritor Carlos Argentino, há mais que uma história de amor, mais que uma crítica de estilos (uma aula sobre como não escrever), muito mais que a busca do absoluto, da onisciência e da onipresença. Há a vasta cultura de Jorge Luis Borges, que lhe permite referências múltiplas (reais e não raro fictícias), fazendo com que o escritor transite com naturalidade entre as fronteiras da literatura, da filosofia e de disciplinas científicas. Borges, com freqüência nem sempre percebido pelos seus leitores, utiliza conceitos matemáticos com aparente conhecimento de causa e à sua conveniência. E isso fica muito claro no conto El Aleph, quando ele se vale da essência da idéia dos números transfinitos de Georg Cantor (inclusive do seu símbolo matemático) para criar o objeto fantástico do seu famoso conto.

Os números transfinitos datam do final do século 19. São números cardinais ou ordinais maiores do que todos os números finitos, ainda que não representem um infinito absoluto. O matemático Georg Cantor, com a expressão transfinito, quis evitar algumas das implicações da palavra infinito associadas a estes números, embora os mesmos não sejam finitos.  Para representá-los, Cantor adotou como convenção a primeira letra do alfabeto hebraico: o aleph (uma letra sem som, com antigas conotações místicas e cabalísticas). E é exatamente essa letra, cuja grafia lembra a imagem de um homem tocando com uma das mãos o solo e a outra o céu, como que unindo o finito com o infinito, que dá nome ao conto de Borges.

Pela proposição de Georg Cantor, o conjunto de todos os conjuntos contém a si mesmo e se refere a si mesmo. Isso expõe o paradoxo de que um conjunto de infinitos elementos (uma classe infinita) tem a propriedade de o todo não ser maior que alguma das partes. Este tipo de propriedade Borges utiliza à exaustão em sua obra, criando, com maestria, uma visão fantástica para essa fascinante idéia da matemática. A concepção de um conjunto que contém a si mesmo, de uma totalidade que contém e é contida pela parte, a eternidade e El Aleph (ponto que contém todos os pontos) não são meras agregações de presente, passado e futuro, nem de diferentes lugares, espaços, formas e sensações. É algo mais simples e mágico: é a simultaneidade de todos esses tempos e lugares, e, quem sabe, a concepção previsível da divindade ou do inconcebível universo.

Mais que a temática de El Aleph, fantástica mesmo foi a resposta de Borges, quando Estela Canto (sua antiga namorada nos anos 1940 e a quem ele dedicou o conto e presenteou com os originais) lhe comunicou que pensava em vender o manuscrito depois que ele morresse:

-         “Caramba! Sí yo fuera un perfecto caballero iría ahora mismo al cuarto de caballeros y, al cabo de unos segundos, se oiría un disparo.”

Ou quando Borges, no acréscimo ao conto, escrito depois de 1º de março de 1943, sentindo-se incapaz de guardar no tempo os traços de Beatriz Viterbo, conclui que o Aleph de Carlos Argentino é, provavelmente, falso.

O manuscrito do conto El Aleph foi vendido pela sua proprietária, Estela Canto (1916-1994), em 1985, na casa Sotheby’s, de Nova York, enquanto o escritor ainda era vivo.

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