A agricultura atravessa grave crise de liquidez com prejuízos acumulados de R$30 bilhões nas duas últimas safras agrícolas, 2004/2005 e 2005/2006. Alguns analistas tem culpado o dólar e defendem uma desvalorização do real como solução para a crise de renda. Esquecem que a valorização é devida a vários fatores como a manutenção da taxa Selic elevada, a redução da dívida pública, os superávites comerciais, o montante das reservas internacionais, a redução do risco Brasil, o fluxo líquido de investimentos externos e as baixas taxas de juros praticadas em outros mercados, principalmente nos Estados Unidos. Mantida a atual política macroeconômica, na ausência de fatos relevantes, o real continuará valorizado. Portanto, o mercado sinaliza que essa não será uma alternativa viável para solucionar a crise de liquidez em 2007.
Na nossa opinião, o problema deve ser analisado considerando o crescente endividamento do setor a partir da renegociação dos débitos em 1996, a elevação dos custos de produção (fertilizantes, defensivos e juros praticados) desde a safra 1996/97 e os problemas estruturais da economia brasileira.
A partir da renegociação das dívidas existentes através dos programas governamentais conhecidos como PESA e SECURITIZAÇÃO, o setor como um todo ganhou fôlego financeiro e maior capacidade de alavancagem, pois as dívidas foram renegociadas com prazos longos de amortização. Renegociado o estoque da dívida, o clima de negócios existente no setor começa a sinalizar uma percepção entre os produtores de que a demanda por grãos e algodão seria crescente e que os preços praticados seriam estáveis ou crescentes em termos reais. Havia uma expectativa muito otimista sobre a evolução da renda agrícola futura e oferta abundante de crédito para investimento. Nesse cenário, os empresários rurais foram ousados e realizaram investimentos adicionais em maquinaria agrícola, armazenagem, fertilizantes e corretivos da fertilidade dos solos, armazéns e instalações. Como conseqüência, a produção brasileira de grãos aumentou de 78,4 milhões de t em 1996/97 para 119,1 milhões em 2003/4, a área cultivada aumentou de 36,5 milhões de hectares para 47,4 milhões e a produtividade cresceu de 2,14 t/há para 2,51 t/ha.
Nesse mesmo período, os custos de produção apresentaram um crescimento substancial. Como exemplo, o custo de produção de soja (saco de 60 kg) aumentou de R$13,00 em 1996 para R$34,00 em 2006. Esse aumento geral de custos passou relativamente despercebido devido a evolução da produtividade das culturas nesse período e à evolução positiva dos preços agrícolas entre 1998 e 2004. Quando em 2005 ocorreu queda acentuada nos preços recebidos, a crise de liquidez emergiu com toda a sua intensidade, o setor voltou a ficar inadimplente e uma nova negociação do montante da dívida foi necessária para viabilizar o setor.
Parte importante dos custos existentes são os juros reais praticados no país. O agronegócio movimenta anualmente, sob forma de capital de giro, R$110 bilhões, sendo R$33 bilhões de crédito oficial e R$77 bilhões de fornecedores privados. Deste total, R$21 bilhões são aplicados à juros anuais de 8,75% e R$89 bilhões à juros livres de mercado, o que resulta em juros médios acima de 20%. Parte dos empréstimos privados de R$77 bilhões são captados no exterior por empresas privadas que comercializam insumos e exportam grãos a juros de 4 a 5% ao ano e repassados aos produtores a juros acima de 18% ao ano, chegando em alguns casos a 27% ao ano. Ao longo dos anos tem sido um negócio altamente lucrativo, pois as empresas ganham na operação financeira e na comercial (em alguns casos também na variação cambial). Mas em 2006, esse ciclo foi interrompido e as empresa fecharam 2006 com recursos a receber em valores acima de R$ 6,0 bilhões.
O governo acordou para a gravidade da situação em maio de 2006, quando várias rodovias federais foram interditadas por agricultores. Sob pressão, lançou um pacote agrícola (R$ 60 bilhões) para financiar a nova safra 2006/07 e renegociou dívidas em atraso de 2005 e 2006, para devedores adimplentes junto aos bancos em 31/12/2004. Resolveu uma parte do problema, já que a crise possui profundas raízes estruturais bastante conhecidas: pesada carga tributária (até 38% aa); juros médios anuais próximos a 20% e crédito oficial a juros adequados limitado; inexistência de seguro de produção e de renda rural; políticas públicas deficientes, limitadas e não integradas; pouca integração das cadeias produtivas e baixa agregação de valor dos produtos agropecuários; barreiras logísticas (estradas precárias, falta de malha ferroviária, portos deficientes e mal administrados, hidrovias inexistentes, limitada capacidade de armazenagem, regulação deficiente) significativas; limitações em quantidade e qualidade profissional nas negociações internacionais; recursos insuficientes e liberação intempestiva para fiscalização agropecuária; investimentos limitados, dispersos e declinantes em ciência, tecnologia e inovação (a Embrapa teve seu orçamento total reduzido de R$1,43 bilhões em 1996 para R$955,5 milhões em 2005, em reais de 2005); contratos e direitos de propriedade seguidamente desrespeitados e justiça muito lenta na solução de pendências judiciais. Além disso tudo, a ação dos movimentos políticos no campo, disfarçados de movimentos sociais, que defendem a implantação do socialismo no país, aumenta os custos de produção, direta e indiretamente e afugenta novos investimentos.
As medidas para renegociação foram boas, oportunas e necessárias para manter a competitividade, a paz no campo, os empregos, a renda, os alimentos baratos e resolveram parcialmente a falta de liquidez em 2006. Mas não beneficiaram todos os produtores, pois uma parcela significativa em várias regiões do país está endividada com fornecedores privados, dispõem de crédito limitado e não possuem garantias reais adicionais para alavancar novos empréstimos, pois houve grande desvalorização dos ativos agrícolas.
Mesmo com a previsão de uma safra normal e recuperação nos preços de várias commodities, principalmente milho, soja e carnes, não haverá renda agrícola suficiente para pagar todos os débitos existentes - será necessário pagar parte dos custeios atrasados das safras 2004/05 e 2005/06, o custeio integral da safra 2006/07 e para muitos, mais uma parcela referente a dívidas de investimento.
Renegociar o estoque da dívida total do setor agrícola, em condições que assegurem a efetiva capacidade de pagamento é uma condição necessária mas sozinha não é suficiente para resolver o problema. Já houve uma redução real dos custos de produção, principalmente no ajuste dos preços de parte dos insumos, o que sinaliza que as margens praticadas pelos fornecedores estavam de fato elevadas. Mesmo assim, os custos continuam elevados, pois os graves problemas estruturais continuam existindo. Enquanto esses problemas não forem devidamente equacionados a crise de liquidez da agricultura não terá uma solução definitiva, mesmo com desvalorização do real, fato altamente improvável em 2007.