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Da terra de James Joyce partiram os Coffin-Ships



Gilberto R. Cunha

Poucos assuntos na história das ciências agrárias foram mais difundidos e, ao mesmo tempo, tão mal contextualizados historicamente quanto a “grande fome da batata”, que assolou a Irlanda entre 1845 e 1849. Nos manuais de Fitopatologia, o episódio é referenciado como um exemplo clássico de epidemia em plantas cultivadas. Contempla os ingredientes básicos: hospedeiro suscetível (batata), patógeno virulento (Phytophtora infestans) e ambiente favorável. E é nesse tal “ambiente favorável” que, mais além do meio físico, entra o homem e as suas contradições, fazendo com que os protagonistas dessa história (irlandeses e britânicos), na época, não tivessem consciência da sua causa e nem uma dimensão clara das suas possíveis conseqüências.

No distante ano de 1845, a safra de batata (“a riqueza dos pobres”) na Irlanda prometia ser excepcional. Mas, eis que tudo mudou: inverno no meio do verão, cerração, frio e chuvas intermináveis encharcaram os campos. Os primeiros sintomas de uma peste desconhecida começaram aparecer nas plantações. Era a “requeima”, uma doença cuja prevenção só seria descoberta 70 anos depois. E mais: a Irlanda dependia da batata. Um ano de má colheita e a fome seria imperativa. Começava aí uma história de ódios e de lutas entre irlandeses e britânicos, cujos desdobramentos, com os atentados terroristas do IRA (Exército Revolucionário Irlandês), chegariam até a última década do século 20.

Na Irlanda do século 19, os ingleses eram proprietários de terras e os irlandeses arrendatários. Os donos da terra pensavam apenas no lucro. Os arrendatários eram agricultores miseráveis. Veio a “requeima”, em 1845, e com ela a fome. Não havia alimentos. No ano seguinte a situação piorou: novamente clima desfavorável e atravessadores inescrupulosos prejudicaram o abastecimento do país. Os ingleses se preocupavam apenas com o pagamento do aluguel das terras. As autoridades, insensíveis ao problema dos irlandeses, lavaram as mãos. O contribuinte inglês não estava disposto a arcar com o ônus da fome na Irlanda.

Em 1847 (“O 47 Negro”), havia mortos e doentes por toda parte. Tifo, febre recorrente, desinteria e diarréia infecciosa varriam o país. Multidões vagavam sem rumo, fugindo da fome e da morte. Os camponeses abandonavam suas casas e as terras. Começava um dos maiores êxodos da história européia. Milhares de irlandeses migraram para a América do Norte, com destino aos Estados Unidos e ao Canadá. A travessia do Atlântico era mais uma pesadelo. Navios superlotados, com alojamentos abaixo dos conveses (proliferando piolhos e doenças), faziam com que muitos não resistissem à longa viagem, configurando a imagem de “Coffin-Ships” (“Caixões Flutuantes”) para essas embarcações. A peste da batata na Irlanda somente cederia em 1849, deixando um milhão de mortos e dois milhões de migrantes. Os irlandeses consideraram genocídio o descaso das autoridades britânicas em socorrer o povo.

A lembrança da “grande fome” permaneceria arraigada no sentimento do povo da “Ilha Esmeralda”, forjando uma história marcada por lutas pela independência e dificuldades econômicas. A República da Irlanda, capital Dublin, seria reconhecida como estado livre em 1921, permanecendo a Irlanda do Norte, capital Belfast, sob domínio inglês (tratado formalmente reconhecido em 1985). Intensificou-se a luta entre católicos (sul) e protestantes (norte). Em 1993 o IRA, que surgiu em 1919, renunciou à violência para que o Sinn Fein, braço político do grupo, tomasse parte das negociações de paz, suspendendo as operações militares em 1994.

Foi na “Verde Erin” que nasceu James Joyce (1882-1941). O dublinense, considerado um dos maiores escritores do século 20, autor de Ulysses e Finnegans Wake, e construtor de personagens memoráveis tipo Stephen Dedalus e Leopold Bloom.

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