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Segredos juninos



Francisco Graziano Neto

Festa junina, quem diria, nasceu na Europa. Trazida pelos portugueses, tornou-se símbolo do caipirismo nacional. O agricultor gosta, rememora suas origens. Teme, porém, certo preconceito camuflado na sociedade. As origens do festejo junino remontam às antigas festas pagãs. Fogueiras ardiam para celebrar o início do verão europeu, marcado em 21 de junho. Conhecido como solstício, indica o mais longo dos dias no calendário. No hemisfério sul, ao contrário, mostra a noite mais duradoura, entrada do inverno. Assuntos da astronomia.
Durante a Idade Média, no século VI, a fogueira acabou cristianizada pelo Vaticano, tornando-se um atrativo da festa de São João Batista. A lenda católica ensina que, para avisar Maria e obter seu auxílio no parto, sua prima Isabel acenderia o fogo sobre o monte. Vai saber.

Curiosa, no mínimo, também é a origem da “quadrilha rural”, a mais famosa dança das festas juninas. Advinda da “quadrille” francesa, evoluída por sua vez da medieval “contredance” inglesa, a coreografia por aqui chega no século 19, época que Paris ditava a moda colonial. Ganha vestuário campesino e se torna um fenômeno do folclore brasileiro.

Chega a ser decepcionante descobrir essa influência européia no mundo rural brasileiro. Pesquisando a história dos festejos juninos, pode-se perceber que suas alegorias e manias sofreram forte influência da classe urbana, organizada nos clubes e escolas públicas, muito mais que a tradição cabocla propriamente dita. No Nordeste, onde o São João vara a semana, está claro que a cultura urbana se apropria dos valores rurais para criar uma espécie de carnaval caipira, regado a muito forró, cerveja e cachaça. Haja fôlego.

Todos adoram frequentar uma animada quermesse, esquentando o frio com um bom quentão. Poucos sabem, todavia, que no final da Idade Média tais festas, duradouras, utilizadas para se comemorar o aniversário do santo padroeiro da paróquia, haviam sido proibidas pelo rei Carlos V, da França. Em vão. Poucos ligaram para o édito real, datado de 1531, mantendo o costume, inicialmente religioso, de se deliciar com acepipes e danças campesinas. Pecados veniais.

O quentão está salvo. Segundo o folclorista Amadeu Amaral, autor de “O Dialeto Caipira”, a palavra tem mesmo origem brasileira, tradicional. Mas, cuidado. O gengibre, tubérculo que empresta seu peculiar gosto à deliciosa bebida, se origina da Ásia. Descoberto pelas Cruzadas, difunde-se na Europa. Menos de um século após o descobrimento, chega ao Brasil, onde bem se aclimata, parecendo planta nativa. Indígenas o denominavam magarataia.

Sem aguardente inexiste quentão. Pinga, essa sim, é invenção tipicamente brasileira. Fruto da fermentação da garapa da cana-de-açúcar, rica planta importada da Ásia, a cachaça surgiu em engenho da capitania de S. Vicente. Seu consumo se expande, a tal ponto, que ameaça o comércio da bagaceira e do vinho portugueses, provocando várias tentativas de sua proibição pela Corte. Sem resultados, a Metrópole taxa a bebida nativa, transformada em alternativa nacionalista. Em 1756, a cachaça se destaca na contribuição de impostos, exigidos para a reconstrução de Lisboa, arrasada por grande terremoto no ano anterior. Pinga conforta Portugal.

Os quitutes mais abrasileirados, saciados à farta durantes as festas juninas se derivam do milho. Bolo de fubá, milho cozido, pamonha e canjica se misturam nas barracas da quermesse. O cereal, utilizado na alimentação dos povos pré-colombianos, mostra verdadeira origem americana. No Brasil, seu cultivo é conhecido pelos indíos guaranis desde antes da chegada dos europeus. Na senzala, o grão amarelo virava polenta, munguzá, broa. Época dura.

Segredos interessantes se escondem na história das festas juninas. Incruados nas comidas e bebidas, nas danças e alegorias, aguçam a curiosidade. Os trajes típicos caracterizam um estilo de vida. Veste-se o caipira com chapeú de palha, calça remendada, camisa xadrês, vestido florido, tranças nos cabelos. Coisa da roça, gente de outrora.

Cuidado. Esse folclore deixa desconfiado agricultor sestroso. É bem verdade, sim, que na árdua labuta de antanho as precárias vestimentas pouca qualidade ostentavam. Trabalhar de sol a sol arrebenta qualquer roupa, prá não falar do chapéu suado. Mas essa reprodução tardia do caipira, cultivada nas festas juninas, pode carregar um toque depreciativo sobre a cultura rural. O perigo do Jeca Tatu.

Há quem pense que o agricultor brasileiro seja atrasado, prá não dizer ignorante. Essa idéia advém, principalmente, da caricatura explorada pelo personagem de Mazzaropi nos populares filmes dos anos 60, que marcaram fortemente a opinião pública. Andar desajeitado, calça “pula-brejo”, português errado, ar ingênuo, assim cravou o grande artista o estereótipo do caipira. Na época em que a forte urbanização, qual ribalta, atraia os sonhos do progresso, floresce uma cisma contra o modo de vida rural.

Ora, o verdadeiro folclore cultiva a tradição, misturando história com cultura. Em todo o mundo, os povos homenageiam seu passado, valorizando as origens da sociedade moderna. Afinal, o berço consolida a maturidade do futuro. Benvinda a diversão junina se estimula a reverência aos pioneiros e obriga à reflexão do presente. A festa fica bonita.

Mas, por favor, cuidado na tinta. Pintar o dente das crianças de preto, para simular na quadrilha sua banguelice, querendo indicar semelhança com a gente do campo, passa do ponto. Deprecia a dignidade do agricultor, deseduca a sociedade.

Caipira, sim, com muito respeito.

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