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O artigo 5° da Lei n° 11.105, de 2005, não é inconstitucional


Reginaldo Minaré

No dia 30 de maio de 2005 o Procurador-Geral da República ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade – Adin n° 3510 – alegando ser inconstitucional o artigo 5° da Lei n° 11.105/05, que permite, cumpridas determinadas exigências, a utilização de células-tronco embrionárias em pesquisas e terapias.

A Adin 3510, cujo relator é o Ministro Carlos Brito, tem por assunto tema de fundamental relevância, principalmente para aqueles que são portadores de determinadas doenças ainda incuráveis e para os que serão em futuro breve, já conta com diversas instituições admitidas na qualidade de amicus curiae e foi tema de audiência pública no Supremo Tribunal Federal - STF, e atualmente está com o Ministro relator para análise da transcrição dos argumentos apresentados na audiência pública realizada no dia 20/04/2007.

Na ação proposta, o Procurador-Geral tenta demonstrar que o artigo 5° da Lei n° 11.105/05 é incompatível com o que está disposto no caput do artigo 5° da Constituição Federal – CF e no artigo 1° inciso III também da CF.

 

Dispõe o artigo 5° da Lei 11.105/05:

 

"Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:

 

I – sejam embriões inviáveis; ou

 

II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento.

 

§1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.

 

§ 2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.

 

§ 3º É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997".

 

Dispõe o artigo 5° caput e artigo 1° inciso III, ambos da CF:

 

"Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

 

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

 

III - a dignidade da pessoa humana;"

 

Contestar os argumentos do Procurador-Geral e defender a constitucionalidade do artigo 5° da Lei 11.105/05 é, ao mesmo tempo, a realização de um exercício profundo da hermenêutica cujos argumentos e conclusões devem ser apresentados dentro de uma retórica precisa e objetiva.

Poder-se-ia também dizer que a contestação da Adin está dentro do campo de uma discussão política e ética, que se realiza na sociedade global e não apenas na sociedade brasileira. Todavia, acredito que, no Brasil, o debate político e ético já foi realizado no âmbito do Congresso Nacional, onde diversas audiências públicas sobre o tema foram elaboradas, a sociedade participou e os representantes eleitos pelo povo, respeitando todas as regras do procedimento democrático estabelecido pela CF, votaram, em sua grande maioria, pela aprovação da redação do artigo 5° da Lei 11.105/05. Assim, e considerando que a CF em seu artigo 102 estabelece que ao STF compete a guarda da Constituição, entendo que a análise do tema neste fórum deve ser realizada de forma precisa e objetivando responder se o artigo 5° da Lei 11.105/05 afronta o artigo 5° caput da CF ou o princípio da dignidade humana previsto no inciso III do artigo 1° da CF.

Na ação proposta, argumenta o Procurador-geral que pelo fato da vida humana iniciar no momento da concepção e a Constituição garantir a inviolabilidade do direito à vida, de todo brasileiro e estrangeiro residente no Brasil, a proteção deste bem jurídico deve ser realizada, de forma absoluta e dogmática, a partir do momento da concepção, não permitindo qualquer flexibilização.

Que a vida está presente no momento da fecundação é algo que não contexto, pois não conheço argumento convincente na biologia que afirme o contrário. Todavia, considero pertinente o questionamento feito por Umberto Eco, - na obra Em que crêem os que não crêem? -, que pergunta, para ilustrar sua proposta de reflexão sobre até onde é possível retroceder, se vida e humanidade já não estão no sêmen, e podemos dizer também no óvulo, antes mesmo do encontro entre os 23 cromossomos masculinos com os 23 cromossomos femininos? Para problematizar seu questionamento, Umberto Eco propõe a reflexão sobre o que dizer a respeito do desperdício de sêmen por parte de um adolescente em tentação?

Estas questões colocadas são pertinentes, pois nos convida a refletir com profundidade sobre qual o significado conceitual da palavra vida no contexto do artigo 5° da CF, e a intensidade do alcance do artigo.

Fazendo uma análise literal do texto constitucional, fica claro que a CF objetivou garantir a vida de brasileiros e estrangeiros residentes no País. Assim, não resta dúvida que o constituinte de 1988 não tinha a intenção de retroceder ao ponto de atingir aquele adolescente em tentação lembrado por Umberto Eco. Também não nos parece razoável atribuir ao constituinte a idéia de que, com a redação que aprovou, tinha a intenção de considerar um embrião congelado importado da Nova Zelândia como um estrangeiro residente no País.

Por outro lado, compreendendo ser o comando contido no caput do artigo 5° da Constituição o estabelecimento de um princípio, imperioso se faz estabelecer o entendimento sobre qual seria a intensidade da proteção necessária para garantir que o princípio do direito à vida não fosse violado pela legislação e, também, refletir sobre situações onde outros princípios constitucionais com ele concorriam.

Afirmar que para garantir a inviolabilidade do princípio do direito à vida seria necessária uma proteção absoluta e inflexível, inclusive para embriões congelados e inviáveis para a reprodução humana, sem dúvidas seria uma argumentação simplista e até falaciosa. Pois, fazendo uma afirmação nesse sentido, seria difícil depois justificar a constitucionalidade do aborto em caso de gravidez oriunda de estupro, que é um procedimento garantido pelo Código Penal, o aborto no caso de anencefalia do feto, que já é uma prática autorizada em muitos casos pelo Poder Judiciário, onde caudalosa é a jurisprudência nesse sentido, e até mesmo os critérios utilizados para assegurar a preferência pela vida da gestante em casos onde a preservação das vidas do feto e da gestante não são compatíveis. Tudo isso, sem falar que a própria Constituição já relativizou a proteção ao direito à vida ao permitir que, em caso de guerra declarada, seja adota a pena de morte.

Diante do que até aqui foi argumentado, resta claro que interpretar o caput do artigo 5° da CF como comando para uma proteção absoluta e inflexível do direito à vida não é um exercício razoável da hermenêutica e, conseqüentemente, a retórica fica desprovida de fundamento sólido e convencedor.

Efetivamente, ao aprovar a redação do artigo 5° da Lei 11.105/05, o Congresso Nacional em nada violou o princípio de proteção do direito à vida. O que fez o Parlamento foi legitimar um interesse da sociedade, pelo menos o interesse da maioria representada, que considera que em nada viola o princípio do direito à vida o fato de permitir a realização de pesquisas com célula-tronco embrionária para tentar descobrir a cura ou tratamento para melhorar as condições de vida de crianças, adolescentes, jovens e idosos, que são acometidos por doenças incuráveis até o momento ou com poucas possibilidades de tratamento.

Além disso, o Parlamento não atuou de forma irresponsável no momento que legislou. O artigo 5° da Lei 11.105/05 tem uma redação que permite o uso de célula-tronco embrionária de forma contida, muito criteriosa e amparada por instrumentos coercitivos que podem ser utilizados em qualquer situação que configurar a prática de um excesso ou banalização. Modo de proceder que de forma alguma torna banal o uso de embriões humanos.

Segundo dispõe o artigo 5° da Lei 11.105/05, só é permitido o uso de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento; e que sejam oriundas de embriões congelados há 3 (três) anos ou mais até a data da publicação da Lei ou que, já congelados na data da publicação da Lei, completaram 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento, ou que sejam inviáveis. Exige ainda o referido artigo 5º em análise que, em qualquer caso, o uso de embriões congelados deve se precedido do consentimento dos genitores, e que os protocolos de pesquisas sejam aprovados pelos Comitês de Ética em Pesquisa - CEP.

Para garantir que os critérios estabelecidos sejam cumpridos, a própria Lei 11.105/05, em seu artigo 24, criminalizou o uso de embriões humanos em desacordo com as regras estabelecidas em seu artigo 5°. Já para garantir que a permissão não sirva para fomentar a criação de um mercado de embriões e de células-tronco embrionárias, o próprio artigo 5º proíbe, em seu § 3°, a comercialização do material biológico afirmando que sua prática configura o crime tipificado no artigo 15 da Lei 9.434/97, lei que dispõe dobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento.

Evidente, portanto, que o artigo 5° da Lei 11.105/05, em nada viola o artigo 5° caput da CF. Logo, o argumento de inconstitucionalidade não pode ser legitimo para retirá-lo do ordenamento jurídico brasileiro.

Já a defesa da tese de que a preservação da dignidade da pessoa humana estaria ameaçada com a manutenção do artigo 5° da Lei 11.105/05 no ordenamento jurídico pátrio, sem dúvida trilha o caminho da contramão do consenso estabelecido pela maioria. O que ficou demonstrado com a deliberação do Congresso Nacional é que a aprovação da matéria disciplinada nos termos do mencionado artigo 5° aprimora o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana. Inclusive, foi esta a tese que aglutinou o consenso da maioria no procedimento de legitimação pela democracia, e não aquela defendida pelo Procurador-Geral, que é exatamente a tese contrária que foi derrotada no Parlamento e que não contou com o veto do Chefe do Poder Executivo.

Locução cristaliza na maioria das línguas, mas pouco comentada e definida, o significado conceitual da expressão "dignidade humana" é um daqueles conceitos que imaginamos conhecer muito e ter pleno domínio, mas que ao sermos convidados a comentá-lo e explicá-lo percebemos que nossa convicção não é tão clara como acreditávamos. Oriunda do latim dignitas, a palavra dignidade significa valor, distinção, princípio ao qual está baseado o proceder que enseja respeito, e corresponde à tradução feita por Âncio Boécio e os escolásticos da palavra grega aksióma – axioma -, que segundo Aristóteles significa a proposição primeira de que parte a demonstração, o princípio basilar que deve ser necessariamente possuído por quem queira aprender o que quer que seja.

Na modernidade, Immanuel Kant, na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, procura demonstrar que o ser humano possui um valor em si mesmo, uma dignidade, e constrói o famoso imperativo prático: "Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio". Para que o ser humano identifique a limitação que esse imperativo prático impõe às suas ações, Kant propõe a seguinte reflexão: "Age sempre segundo aquela máxima cuja universalidade como lei possas querer ao mesmo tempo". Segundo Kant, essa é a fórmula para extrair ou identificar uma vontade boa. Em nosso momento histórico, esse imperativo prático kantiano é muito citado como significado da expressão "dignidade da pessoa humana".

A idéia de uma dignidade inerente a todos os membros da família humana se encontra na base da Carta Internacional dos Direitos Humanos, e no Brasil o artigo 1°, inciso III, da CF afirma que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito e tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana.

O Procurador-Geral, para desenvolver sua tese, levanta a existência de conflito de princípios constitucionais, argumentando que o uso de células-tronco embrionárias, por violar o princípio do direito à vida, necessariamente viola o princípio da dignidade humana. Fica claro, em seus argumentos, que o Procurador coloca o princípio do direito à vida em patamar absolutamente superior ao princípio da dignidade da pessoa humana, não aceitando que em nenhum momento essa ordem hierárquica seja invertida.

Não admite, por exemplo, que em nome do respeito ao princípio da dignidade humana, a milhares de crianças portadoras de distrofias musculares sejam-lhes dada a oportunidade da ciência atuar na tentativa de encontrar cura para uma doença que deteriorará seus músculos e as levará à morte precoce.

Não admite, também, que em nome do respeito ao princípio da dignidade humana, a milhares de idosos, atuais e futuros, que trabalharam para construir as famílias e o Estado, e que são portadores de doenças degenerativas, sejam-lhes garantido o direito de ver os cientistas trabalhando para encontrar a cura da doença que comprometerá integralmente o gozo de sua velhice.

Evidente, portanto, que ao aprofundar a reflexão sobre o que se pretende realizar com o desenvolvimento de pesquisas com as células-tronco embrionárias, não dá para querer que a pretensão do Procurador-geral que propôs a ação de inconstitucionalidade seja elevada à universalidade como uma lei que posso querer que seja também aplicada a mim e ao meu próximo.

Cabe observar ainda que o argumento de que as pesquisas com células-tronco oriundas de outras fontes, como cordão umbilical, poderiam substituir o uso das células-tronco embrionárias no processo de busca de cura para os males acima mencionados, também não justifica a pretensão do Procurador-Geral. Visto que, sendo possível lançar mão também do uso de célula-tronco embrionária, modalidade de pesquisa que é considerada por significativo número de cientistas com mais apta a atingir objetivo tão nobre, não é razoável privar a sociedade da liberdade de pelo menos tentar.

Assim, resta indubitável que a pretensão que objetiva colocar o princípio do direito à vida em patamar absolutamente superior ao princípio da dignidade da pessoa humana, e dogmatizar uma hierarquia de princípios constitucionais nestes termos, não pode ser acolhida, visto não possuir a razoabilidade que se espera ver aplicada em processo que, em seu âmago, é suscitado conflito de princípios constitucionais. Principalmente, quando neste momento histórico a interpretação dos sistemas jurídicos não mais se baseia apenas no ideal clássico da ciência oriunda da física aristotélica, pois com ele concorre o próprio relativismo ou incertezas da física moderna e o probabilismo da ciência experimental.

Neste caso específico, garantir, com regras claras e razoáveis, a liberdade para que a sociedade possa pesquisar a cura para milhares de pessoas é, sem dúvida, uma alternativa mais próxima ao respeito do princípio da dignidade humana do que aquela que objetiva proibir a pesquisa com células-tronco embrionárias, oriundas de embriões inviáveis para reprodução ou congelados a mais de três anos, em nome do respeito ao princípio do direito à vida.

Caso seja acolhida a tese do combativo Procurador-Geral, resta indubitável que não só o fundamento do Estado Democrático de Direito previsto no inciso III do artigo 1° da CF estaria sendo violado, como também o parágrafo primeiro desse mesmo artigo 1° da CF, que dispõe: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição".

Para concluir, cabe lembrar que aquele que, por motivo de crença, não concordar com o procedimento estabelecido pelo artigo 5° da Lei 11.105/05, tem todo direito de não autorizar o uso de seus embriões e, inclusive, não fazer uso quando desenvolvida uma técnica baseada nesta pesquisa.

 

Reginaldo Minaré

Advogado e Diretor Jurídico da ANBio.

www.anbio.org.br

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