Biodigestão anaeróbia de dejetos de suínos: aprendendo com o passado para entender o presente e garantir o futuro
Várias ciências devem ser utilizadas na resolução dos problemas ambientais de qualquer atividade humana. Dentre essas ciências devemos considerar a História (estudo da ação humana ao longo do tempo paralelo ao estudo dos processos e dos eventos ocorridos no passado). Entre os tipos de História, os que mais nos interessam é a Pragmática (objetiva mudar os costumes políticos e corrigir os contemporâneos, utilizando o caminho de mostrar os erros do passado) e a Científica (há uma preocupação com a verdade, com o método, com a análise crítica de causas e conseqüências, tempo e espaço).
Os problemas ambientais decorrentes da atividade suinícola não são novidade para nós, sabemos há muito, de suas conseqüências e desta forma várias ações, projetos, tecnologias, políticas foram propostas. Certamente, todas estas, de alguma forma, contribuíram para melhoria da qualidade ambiental das regiões suinícolas bem como da convivência desta produção com o ambiente. Mas desafios ainda existem e se tornarão maiores se considerarmos a potencial expansão desta atividade no Brasil, baseado em estudos de várias agências como o Banco Mundial, OCDE e a FAO. Para superar estes desafios, devemos aprender com o passado, para que os erros sejam corrigidos e os acertos mantidos.
A utilização de biodigestores no tratamento de dejetos de suínos é um capítulo a parte na histórica tentativa de resolver os problemas ambientais desta atividade. Neste momento, o país vive a terceira onda desta História na qual esta tecnologia tem sido colocada como a única tecnologia capaz de resolver os problemas ambientais e, além disso, gerar créditos de carbono. Se houveram outras duas ondas, devemos perguntar: por quê elas foram ondas, simplesmente vieram e foram embora? O que aconteceu para que muitos biodigestores implantados no passado não estejam funcionando até o presente? Por quê muitos suinocultores que tinham estes biodigestores, hoje dizem que esta tecnologia não funciona? Quais foram os acertos e erros nestas duas ondas anteriores?
As perguntas acima já demostram que o processo de biodigestão anaeróbia não é algo novo, tanto para a suinocultura como para outras produções animais. Existe uma história, que deve ser considerada no presente, pois atualmente, já podem ser observados problemas iguais aos ocorridos no passado em relação ao manejo dos biodigestores, e que se não forem corrigidos, novamente, estaremos comprometendo o uso desta tecnologia. Só que desta vez este comprometimento poderá ter conseqüências mais sérias, pois créditos de carbono já estão sendo negociados no mercado internacional e se os biodigestores não funcionarem, de onde virão os créditos?
A utilização de biodigestores é algo muito antigo, tão antigo, que eles já foram até confundidos com fenômenos sobrenaturais e manifestações de seres místicos ou folclóricos. Então temos uma riquíssima quantidade de informações para analisarmos e aprendermos.
Duas lições que já deveríamos ter aprendido. A primeira: não existe uma única tecnologia para resolver os problemas ambientais da suinocultura, existem produtores e propriedades, ou seja, condições produtivas, econômicas, sociais, ambientais e culturais, que devem ser diagnosticadas e aí sim se propor qual a melhor tecnologia, considerando estas condições. A segunda: qualquer solução que esteja baseada somente no econômico não se perpetuará no tempo, entende-se venda de créditos de carbono, e não resolverá o problema ambiental.
Os biodigestores no mundo
“Em 1806, na Inglaterra, Humphrey Davy identificou um gás rico em carbono e dióxido de carbono, resultante da decomposição de dejetos animais em lugares úmidos. Ao que parece, apenas em 1857, em Bombaim, Índia, foi construída a primeira instalação operacional destinada a produzir gás combustível, para um hospital de hansenianos. Nessa mesma época, pesquisadores como Fisher e Schrader, na Alemanha e Grayon, na França, entre outros, estabeleceram as bases teóricas e experimentais da biodigestão anaeróbia. Posteriormente, em 1890, Donald Cameron projetou uma fossa séptica para a cidade de Exeter, Inglaterra, sendo o gás produzido utilizado para iluminação pública.” (Nogueira, 1986).
“Com o advento da 20 Guerra Mundial, a biodigestão foi bastante difundida entre os países europeus, usando-se o biogás em substituição aos derivados de petróleo, através da queima direta e o uso em veículos. Terminado o conflito, caiu substancialmente o uso desta tecnologia, com exceção da Índia, China e África do Sul, onde continuaram seu desenvolvimento em propriedades de pequeno porte.” (Gaspar, 2003).
Inegavelmente, a pesquisa e desenvolvimento de biodigestores desenvolveram-se muito na Índia, onde, em 1939, o Instituto Indiano de Pesquisa Agrícola, em Kanpur, desenvolveu a primeira usina de gás de esterco. Segundo Nogueira (1986), o sucesso obtido animou os indianos a continuarem as pesquisas, formando o Gobar Gás Institute (1950). Tais pesquisas resultaram em grande difusão da metodologia de biodigestores como forma de tratar os dejetos animais, obter biogás e ainda conservar o efeito fertilizante do produto final. Foi esse trabalho pioneiro, realizado na região de Ajitmal (Norte da Índia), que permitiu a construção de quase meio milhão de unidades de biodigestão no interior daquele país.
“A utilização do biogás, também conhecido como gobar gás (que em indiano significa gás de esterco), como fonte de energia motivou a China a adotar a tecnologia a partir de 1958, onde, até 1972, já haviam sido instalados 7,2 milhões de biodigestores na região do Rio Amarelo.” (Gaspar, 2003).
Para os chineses, a implantação de biodigestores transformou-se em questão vital. Um país continental, com excesso de população, a China buscou, durante os anos de 1950 e 1960, no auge da Guerra Fria, por uma alternativa de descentralização energética. Baseavam-se em uma lógica simples. No caso de uma guerra que poderia significar a destruição quase total da civilização,?o ataque às centrais energéticas, representaria o fim de toda atividade econômica. Isso porque a energia deixaria de ser disponível nos grandes centros, mas naqueles pequenos centros, a pequenas unidades de biodigestão conseguiriam passar incólumes ao poder inimigo. A descentralização, portanto, implica em criar unidades suficientes nas pequenas vilas, vilarejos e regiões mais longínquas Barrera citado por (Gaspar, 2003).
“Hoje em dia, contudo, o motivo da manutenção e expansão do programa de biodigestores é bem mais simples e urgente. Como a China possui milhões de pessoas para alimentar, não é possível ou recomendável mecanizar a atividade agrícola em larga escala, pois o uso de tratores e demais implementos resultaria em um índice de desemprego rural alarmante, criando uma massa de trabalhadores ociosos e descontentes. Um perigo social e político nem um pouco desejável. Assim, o governo chinês optou pelo aproveitamento e aperfeiçoamento de rudimentares técnicas de cultivo do solo, com os biodigestores desempenhando papel de destaque.” (Gaspar, 2003).
Gaspar (2003), ainda destaca que encontram-se dois extremos da utilização de biodigestores. Chineses buscam, nessa tecnologia, o biofertilizante necessário para produção dos alimentos necessários ao seu excedente de população. A energia do biogás não conta muito frente à auto-suficiência em petróleo. Indianos, precisam dos biodigestores para cobrir o imenso déficit de energia. Com isso, foram desenvolvidos dois modelos diferentes de biodigestor: o modelo chinês, mais simples e econômico e o modelo indiano, mais sofisticado e técnico, para aproveitar melhor a produção de biogás.
Ross et al. (1996), observaram que a maior parte das aplicações do processo de biodigestão anaeróbia no meio rural foram direcionadas para os dejetos animais. Durante as décadas de 70 e 80 houve considerável interesse na produção de energia a partir dos dejetos, mas muitas destas instalações não operaram por muito tempo, ou não foram construídas como planejado, resultado do custo excessivo e das dificuldades de operação.
As dificuldades citadas por Ross et al. (1996), serão as mesmas que ocorreram no Brasil, como demonstrado por estudos da Emater e da Embrapa Suínos e Aves. Especificamente, uma delas, dificuldade de operação, e a que, novamente, tem se mostrado como um limitante ao correto manejo dos biodigestores na atualidade.
Os biodigestores no Brasil
A partir da crise energética deflagrada em 1973, a utilização de biodigestores passou a ser uma opção adotada tanto por países ricos como países do terceiro mundo. Com base em um relatório técnico da FAO, a Embrater instalou em novembro de 1979, o primeiro biodigestor modelo chinês, na Granja do Torto em Brasília. “Esta experiência pioneira veio demonstrar que era possível instalar uma unidade produtora de biogás e biofertilizante, empregando exclusivamente areia, tijolo, cimento e cal (Sganzerla, 1983).”
Mas o interesse pelos biodigestores no país teve início com a crise resultante do segundo choque de preços do petróleo ocorrido em 1979. Entre as medidas adotadas pelo governo para reduzir a dependência deste insumo destacava-se um amplo programa de investimento voltado para substituição e conservação de derivados de petróleo (Programa de Mobilização Energética - PME, iniciado em 1980). No período entre 1980-1984, foram utilizadas diversas formas de estímulo à instalação de biodigestores. Assim foram concedidos estímulos materiais, seja através de financiamentos ou mesmo de doações dos recursos necessários à instalação. Em avaliação realizada pela Emater (1984), confirmou-se a hipótese de que os proprietários que receberam os biodigestores a fundo perdido demonstraram menos empenho em mante-los em boas condições de funcionamento do que aqueles que se utilizaram de recursos próprios ou de empréstimos.
Em 1982, existiam em Santa Catarina 236 biodigestores, sendo a quase totalidade destes do modelo Indiano, Christmann, citado por Girotto (1989), destaca que apenas 0,005% destes biodigestores estavam em propriedades suinícolas. Ainda que inexistissem dados precisos quanto ao número de biodigestores no país, a Emater calculou que em 1984 este número era de 3.000 biodigestores, principalmente do modelo Indiano utilizado para biodigestão de dejetos de bovinos. Palhares & Guidoni (2006), utilizando os dados do Levantamento Agropecuário Catarinense (2002-2003) e considerando somente produtores com mais de 50 cabeças de suínos (7.158 suinocultores), verificaram que 0,08% deles possuíam biodigestores e 99,2% esterqueiras.
Apesar de ter ganho novamente destaque na cadeia produtiva devido a possibilidade da venda de créditos de carbono, o biogás é produzido no país desde a década de 40, quando padres construíram biodigestores nas comunidades onde trabalhavam. Quatro décadas depois, o governo implantou alguns programas de incentivo à implantação do equipamento em fazendas. Na época, cerca de sete mil biodigestores foram instalados. Problemas operacionais levaram muitos pecuaristas a abandonar, anos depois a tecnologia. (REVISTA DA TERRA, 2007).
No sítio da agência Ambiente Brasil (2007), é informado que a tecnologia de biodigestores já tem pelo menos duas décadas no Brasil. Iniciou-se com modelos provenientes da China e Índia. No entanto, o Brasil teve algumas dificuldades na sua implementação, fazendo com que esta tecnologia caísse no descrédito no meio rural.
Palhares et al. (2003), partindo da hipótese de que a tecnologia de biodigestão anaeróbia não era amplamente utilizada no meio rural devido à não consideração de que deve haver uma reciprocidade entre o que esta tecnologia demanda e o que o produtor e a propriedade poderiam oferecer, avaliaram o perfil produtivo, social e ambiental de produtores e de propriedades que receberam a tecnologia no início da década de 1980 a fim de detectar possíveis falhas na sua transferência. Treze propriedades foram visitadas. Dentre as propriedades visitadas haviam aquelas que ainda mantinham o biodigestor em operação e outras onde estes haviam sido desativados. Dos produtores entrevistados, 61,5% haviam feito até a quarta série do primeiro grau, 23% tinham somente a terceira séria e somente 15,4% dos produtores haviam completado a quinta série. Considerando que a tecnologia de biodigestão envolve conhecimentos como microbiologia, física e química e que estes não são abordadas no ciclo escolar até a quinta série, o reduzido nível de escolaridade pode ser considerado como uma desvantagem que estes produtores possuíam a fim de utilizar esta tecnologia. Uma forma de suprir esta deficiência seria pela proposição de treinamentos e/ou pelo oferecimento de uma assistência técnica periódica a estes produtores.
Os autores destacam que quando os produtores foram questionados se antes da aquisição do biodigestor o produtor participou de algum treinamento, 100% dos entrevistados responderam que participaram de um treinamento com carga horária de 2h, um tempo muito reduzido para o entendimento completo do manejo e potencialidade da tecnologia. Quanto a existência de auxílio técnico, 46,1% responderam que um técnico o visitava a cada seis meses e 53,8% atestam que estas visitas tinham uma periodicidade anual. Desta forma, o baixo nível de escolaridade aliado à deficiência de formação e de assistência técnica dificultaram o perfeito manuseio dos biodigestores e, consequentemente, podem trazer conseqüências ambientais que poderiam ser evitadas.
Kunz (), “o mais importante ponto, no que diz respeito a sistemas de tratamento, é a capacitação do pessoal responsável pela operação dos sistemas. Na maioria dos casos, o insucesso do tratamento está relacionado a erros humanos, causados pela má operação dos sistemas. Este pessoal deve receber constante capacitação e entender claramente a importância do processo e como ele funciona, tendo subsídios para a tomada de decisões. Caso o fator humano seja desconsiderado qualquer opção tecnológica adotada estará fadada ao insucesso.”
Em publicação da Embrapa do ano de 1981 era constatada a viabilidade de um programa a partir de biodigestores no Pantanal Mato-Grossense. “Esta tecnologia oferece condições excepcionais para um arrojado plano de utilização de energia proveniente da fermentação de biomassas. A utilização da energia do biogás, nesta região, é muito favorecida em virtude das condições climáticas e abundância de excrementos bovinos para a produção de biogás, abrindo uma perspectiva favorável à sua aplicação no sentido de se obter energia a custo relativamente baixos, através de unidades digestoras. A utilização dessa forma de energia, pelas fazendas da região, resultará em menores gastos com derivados de petróleo que tanto têm onerado a produção regional (EMBRAPA, 1981).”
“Mais recentemente, devido à crise no sistema brasileiro de fornecimento de energia elétrica, ocorreu o fenômeno dos "apagões" e os biodigestores passaram a ser cogitados novamente como fonte alternativa de energia. Entretanto, bastou o reservatório das hidrelétricas alcançar um volume d'água adequado e o perigo dos "apagões" e do racionamento de energia elétrica passar, para que os projetos de implantação de biodigestores fossem esquecidos e os que estavam em andamento abandonados (Gaspar, 2003).”
Um suinocultor de Toledo-PR que teve seu biodigestor implantado em 1999 atestou: “na década de 80, muitos produtores investiram na instalação de biodigestores, sistema que ficou popular no Brasil, mas aos poucos esse sistema foi sendo desacreditado. Agora, principalmente depois da crise energética, o biodigestor está ressuscitando. Eu acredito que o fator principal do biogás ficar desacreditado é a não utilização do biogás. Existia o biodigestor, existia a produção de gás, mas não existia onde consumir o gás.” (Gaspar, 2003).
Em depoimento, um extensionista rural paranaense sobre o programa de implantação de biodigestores na década de 1980, afirmou: "eu participei pessoalmente do primeiro ciclo de incentivos a biodigestores no Paraná, entre 1978 e 1986. Na época, como filho de um pequeno produtor rural, ajudei a convencer meu pai a investir num biodigestor rural. Três anos após, o biodigestor ainda não estava funcionando. Os erros de projeto e desconhecimento da tecnologia e os técnicos da Emater e da empresa fabricante da cúpula de fibra de vidro foram incapazes de fazer a mesma funcionar a contento. Meu pai então retirou a cúpula e utilizou o biodigestor como uma simples esterqueira. Praticamente todos os biodigestores implantados aquela época, aqui na região (Oeste do Paraná), foram abandonados. Meu maior receio é o grande número de 'pseudo-especialistas' que surgem nesta situação e que acabam fazendo experiência com os produtores. Isto pode levar a um novo fracasso na adoção desta tecnologia." (Gaspar, 2003).
Trabalhos da Embrapa diagnosticaram que em 1979 a não disponibilidade de energia elétrica na propriedade era uma realidade para 41 mil famílias de suinocultores catarinenses. O Governo Federal iniciou em 2004 o “Programa Nacional de Universalização do Acesso e Uso da Energia Elétrica - Luz para Todos" com o objetivo de levar energia elétrica para a população do meio rural. Se no início da década de 1980, na primeira onda dos biodigestores, quando ocorreu o PME, este tivesse sido desenvolvido em sua plenitude e de forma criteriosa, não haveria necessidade do governo estar desenvolvendo um novo programa com o mesmo fim. Houveram três crise energéticas, petróleo, “apagão” e a atual, nas três os biodigestores aparecem como uma grande alternativa, em duas a alternativa não vingou! Será que são os créditos de carbono é que vão fazer a diferença?
Com a divulgação do Plano Nacional de Energia 2030, sem tem um referencial da produção e consumo para os próximos anos. O Plano conclui que: as energias denominadas como Outras (que incluem os resíduos agrícolas, industriais e urbanos) representaram em 2005 2% do consumo energético do país, sendo que em 2030 representarão 3%; o consumo energético do setor agropecuário que em 2005 representou 5% do total do país, irá ter a mesma representatividade em 2030; as fontes primárias (excetuando-se a cana-de-açúcar) terão um crescimento de 4% na matriz energética entre 2005-2030; o Brasil conseguirá manter um grau relativamente baixo de dependência externa de energia, custos competitivos de produção de energia e níveis de emissões de gases (um dos mais baixos do mundo) praticamente inalterados (MME, 2007).
No último Relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente verificam-se as seguintes constatações: “a porção de energia produzida no mundo a partir de fontes renováveis irá aumentar substancialmente com as dezenas de bilhões de novos investimentos. O crescimento no uso das energias renováveis não mais está relacionado com a alta e a baixa do preço do petróleo, estão se tornando uma opção de sistemas de geração para um crescente número de companhias de energia, comunidades e países, independente dos preços dos combustíveis fósseis. Muitos governos e políticos estão introduzindo legislações e mecanismos de apoio para capacitar o desenvolvimento do setor.” (ENVOLVERDE, 2007).
Falta de assistência técnica, dificuldades com a mão-de-obra, baixa qualidade de certos materiais fornecidos, mudança do produtor para cidade e acidentes triviais, fizeram com que 20% dos biodigestores avaliados não funcionassem no momento do diagnóstico (Emater, 1984). A adoção de uma tecnologia nova, por mais simples que seja, traz consigo, invariavelmente, variadas dificuldades. Desta forma, a constatação do insucesso parcial na instalação dos biodigestores não surpreende, o que é surpreendente é o ritmo inicial das instalações, que foi muito acelerado diante do relativo desconhecimento quanto às potencialidades. Conclusão esta que é tardia em relação ao esforço já feito, mas que, se aceita pelos responsáveis pela continuidade do programa, poderá influir sobre seu andamento futuro.
O parágrafo acima, se retirada a data do estudo, poderia muito bem ter sido redigido na atualidade. Não se tem dados de quanto dos biodigestores já implementados não estão funcionando de forma satisfatória, mas certamente, o cenário existente é o mesmo de 23 anos atrás.
A declaração dada a Gaspar (2003), por um integrante da cadeia produtiva de suínos, atesta que as mesmas dificuldades de operação, identificadas no passado, continuam a acontecer no presente. “A tecnologia que se divulga é muito diferente da realidade que o produtor vai enfrentar no dia-a-dia de sua atividade. Um biodigestor é um dispositivo complexo, que requer atenção diária e que quando manejado sem a devida atenção simplesmente entra em colapso. A necessidade de fazer ajustes, adaptações de equipamentos e manutenções em canos e mangueiras é constante. Em geral, a expectativa do produtor é de que o biodigestor irá resolver todos os seus problemas ambientais e energéticos. Como isso não ocorre, coloca a culpa no técnico e abandona o biodigestor.”
Portanto, Gaspar (2003) conclui: “isto reforça a ideia de que é preciso que os órgãos de expansão rural e associações/cooperativas de suinocultores realizem um trabalho conjunto, com o intuito de examinar, detalhadamente, a tecnologia dos biodigestores e encontrar a melhor solução para os problemas levantados. Caso contrário, os biodigestores continuarão a serem preteridos em favor de tecnologias mais simples e descomplicadas.”
Podemos entender que estas tecnologias mais simples e descomplicadas citadas por Gaspar são as esterqueiras, um sistema de armazenamento de dejetos que condiciona o uso destes como adubo. Este tipo de manejo ambiental não é mais suportado nas regiões produtivas de alta concentração animal, como o Oeste Catarinense, onde há grande disponibilidade de dejetos de suínos, bovinos e cama de aviário.
Deve-se destacar que os biodigestores também apresentam uma dependência de disponibilidade de solo, se a opção for pela utilização do biofertilizante como adubo. Palhares et al. (2003), quando perguntaram à produtores que haviam participado do programa de implantação de biodigestores no início da década de 1980 se estes tinham demanda agrícola para o biofertilizante produzido, 92,3% dos produtores disseram que a sua área comportava 100% do biofertilizante produzido e 7,7% responderam que a área comportava 50% do que era produzido. Mas pelo cálculo da área agrícola que os produtores disseram dispor, do número de suínos e de bovinos que haviam nas propriedades, dos tipos de culturas vegetais cultivadas e com base numa concentração média de nutrientes em biofertilizantes de suínos e bovinos, observou-se que em algumas propriedades a disponibilidade de nutrientes estava além do demandado pelas culturas. O que era preocupante é que todo o biofertilizante estava sendo aplicado na terra, sendo um potencial poluidor do solo, das águas subterrâneas e superficiais e do ar.
Conceitos errados que estão sendo divulgados a respeito dos biodigestores
Analisando as notícias veiculadas eletronicamente no ano de 2006 sobre a temática suinocultura e meio ambiente, o tema com maior abordagem foi o uso de biodigestores para o tratamento de dejetos de suínos, 19,7%. Com a segunda maior abordagem verifica-se a possibilidade de venda de créditos de carbono pela suinocultura, 15,2% das notícias. Estas notícias, além de servirem como um material de análise para avaliar que tipo de informação está sendo veiculada, também propiciam atestar que idéias e conceitos errados estão sendo divulgados a respeito dos biodigestores. Abaixo destaca-se algumas destas notícias.
“Há uma falta de consenso sobre quais tecnologias para o tratamento dos dejetos de suínos são mais adequadas e como controlar a poluição destas criações.” Este consenso nunca existirá e não deve existir, já sabemos quais tecnologias são mais adequadas para cada característica produtiva, a questão é que por razões de comodidade e interesses econômicos, sempre tenta-se eleger uma tecnologia salvadora ou afirmar que não existe solução para o problema, desta forma, continua-se vendendo “milagres” que pouco contribuirão para a viabilização ambiental da suinocultura.
Na página de uma OSCIP cearense, na qual é apresentado o seu projeto de biodigestores para o tratamento de esterco de ovinos, pode-se ler: “...biodigestores são equipamentos de funcionamento simples que chamam cada vez mais atenção por promoverem a preservação ambiental...”. Os biodigestores por si nunca promoverão a preservação ambiental, pois isto é algo muito mais complexo do que ter um sistema de tratamento para os dejetos. Tratar os dejetos e continuar a utilizar os recursos hídricos de forma abusiva ou não possuir licença ambiental para atividade, são exemplos de falta de preservação ambiental, mesmo tendo um biodigestor. Deve-se destacar que a preservação ambiental inclui toda a propriedade, com sua fauna, flora, água, solo, etc.
Em notícia divulgada no site do jornal Correio Catarinense, lê-se: “a lama residual produzida pelo biodigestor passará por tratamento e secagem e será transformada em adubo. A água limpa será despejada nos rios e, depois, reaproveitada na instituição; e o gás metano liberado, resultante da ação anaeróbica das bactérias, será empregado na geração de energia como biogás.” Apesar do biodigestor em questão estar sendo utilizado para o tratamento de esgoto sanitário, que tem carga orgânica muito menor que um dejeto de suíno, é improvável que o efluente que saia deste possa ser descartado em um rio, considerando a legislação CONAMA 357 e as legislações estaduais para descarte de efluentes nos corpos d’água superficiais. No caso da suinocultura, em hipótese alguma, o efluente que sai do biodigestor poderá ser descartado, diretamente, nos rios, antes disso este deverá ser tratado.
Notícia divulgando um projeto desenvolvido ao longo do lago da Usina de Itapu em que um produtor do município de São Miguel é entrevistado informa: “desde que foi instalado o biodigestor, a granja passou a devolver água limpa para o rio.” Apesar da notícia não esclarecer se antes deste descarte no rio, o biofertilizante havia sofrido um tratamento, o conceito que se divulgou é que ele poderia ser descartado diretamente. Uma ação coma essa seria passível de autuação pelo órgão ambiental fiscalizador e parada da atividade até as necessárias correções.
Outra manchete divulgada em dezembro de 2006 dizia: “Mercado do carbono ao alcance dos produtores rurais”. A pergunta que deve ser feita é: a que tipo de produtores este mercado estaria ao alcance?
Palhares & Kunz (2003), em artigo publicado nesta revista ressaltavam: “a comercialização de créditos de carbono, da forma com está delineada nos dias de hoje, não estaria disponível para os pequenos e médios empreendimentos suinícolas, somente para as grandes granjas, as quais dispõem de uma quantidade de dejeto economicamente viável para se fazer o investimento, visando a venda de créditos. A possibilidade de venda de créditos por pequenos e médios suinocultores somente seria viável se estes se organizassem de forma a centralizar o tratamento dos dejetos por biodigestão, onde tanto a quantidade de créditos gerada como os investimentos necessários seriam economicamente viáveis. Os autores destacaram que a resolução dos problemas ambientais da suinocultura demandam ações muito mais complexas que a viabilização da comercialização de créditos de carbono, devendo esta ser considerada como mais uma ferramenta disponível, em busca desta resolução. A suinocultura necessita de ações que sejam sustentáveis no tempo e que considerem a atividade como uma demandadora de recursos naturais.
“O pagamento de crédito de carbono tornou o Protocolo de Quioto o divisor de águas da suinocultura.” Esta afirmação feita em junho de 2006 contém um erro e um risco. O erro está relacionado, conforme citado acima, a estar se baseando a viabilização ambiental de uma atividade em um fator puramente econômico, e como o mercado não é algo estático, este chamado “divisor de águas” já começa a apresentar algumas contestações e problemas, ou seja, riscos. Em notícia divulgada no jornal britânico The Guardian em 23 de junho de 2007 com o título “Uma verdade inconveniente sobre o mercado de créditos de carbono.” Algumas conclusões da notícia nos fazem refletir sobre a venda de créditos de carbono a partir da digestão anaeróbia de dejetos de suínos.
“A reportagem flagra diversas falhas em projetos chamados de compensação de emissões de dióxido de carbono (CO2). A idéia de cancelar as emissões de gases do efeito estufa através do pagamento de reduções realizadas em outro lugar nasceu junto com as primeiras políticas climáticas. O conceito, adotado por lobistas corporativos na reunião de Quioto de 1997, tem se desenvolvido como um desengonçado e problemático adolescente – confuso, imprevisível e difícil de confiar. Isto requer uma medida apurada das emissões que serão compensadas, o que se descobre ser uma charada de incertezas. O Painel Intergovernamental de Mudanças do Clima (IPCC) encontrou uma margem de erro de 10% para medir as emissões da produção de cimento e fertilizantes, 60% nas indústrias petroleiras, de gás e carvão, e 100% em alguns processos industriais. Muitos ambientalistas estão cada vez mais se opondo a compensação porque temem que as empresas optem por esquemas de troca baratos e ineficientes ao invés de cortar suas próprias emissões de CO2.”
Os desafios presentes e futuros
Analisando-se os fatos históricos e os cenários futuros, tanto para o uso de energias renováveis como para o desenvolvimento da suinocultura com conservação ambiental, pode-se visualizar os seguintes desafios:
• Aceitar que o processo de tratamento por biodigestão anaeróbia para os dejetos é eficiente; que pesquisas podem ser realizadas para aumentar esta eficiência; que o maior desafio para seu uso não é tecnológico, mas cultural; que os biodigestores, por si só, não resolvem os problemas ambientais da suinocultura; que eles não são a única tecnologia disponível; que antes de propor a tecnologia, deve haver um estudo de viabilidade desta;
• Realizar ações de capacitação em manejo de biodigestores, para técnicos e produtores, a fim de possibilitar a correta utilização destes. Estas devem ser responsabilidade de órgãos públicos, agroindústrias e associações de produtores. Devem ocorrer a longo prazo e paralelas a um programa de assistência técnica permanente;
• Esclarecer toda a cadeia produtiva sobre as vantagens, desvantagens, limitações e projeções para o mercado de créditos de carbono no mundo. Este esclarecimento não pode ser dado somente pelas instituições de mercado, como as certificadoras, principalmente os governos devem atuar neste esclarecimento;
• Entender que a venda de créditos de carbono é uma ferramenta que irá auxiliar no atingimento de algo bem mais complexo, a produção de suínos em equilíbrio com o ambiente;
• Subsidiar as agências ambientais estaduais com todas as informações necessárias para que estas conheçam a tecnologia, com suas vantagens e desvantagens, a fim de auxiliar nos processos de licenciamento ambiental das propriedades;
• Regulamentar o uso do biofertilizante como adubo através da exigência de planos de manejo de nutrientes nas propriedades;
• Realizar estudos, detectar parceiros e implementar projetos que objetivem a produção de energia a partir dos dejetos de suínos e de outros animais, isto pode se dar pela construção de usinas nas regiões de concentração animal.