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RNA interferente, uma tecnologia a serviço da Humanidade


Decio Luiz Gazzoni

                Nada como um case de sucesso para ilustrar a importância das modernas ferramentas de biotecnologia. Vacinas costumavam demorar muitos anos para serem desenvolvidas e colocadas à disposição da população. No caso da recente pandemia de Covid, os anos foram transformados em alguns meses, mantendo a mesma eficiência de proteção. E as vacinas salvaram milhões de pessoas, de empregos e evitaram um caos incomensurável na economia dos países, por extensão do mundo.

                É assaz importante ressaltar que a maioria da população mundial recebeu vacina contra o SARS-Cov2 baseada em RNA. Ninguém se sentiu um OGM, foi transformado em monstro ou animal aquático. Mas cada indivíduo vacinado foi devidamente protegido contra as formas graves da doença que, antes da vacinação em massa, configuravam um cenário que remetia ao Armageddon bíblico.

                Agora que respiramos aliviados, o case das vacinas da Covid pode parecer trivial, óbvio e rotineiro. É ótimo que assim seja, porque a percepção dominante de que “RNA é do bem” é transcendental para acelerar o desenvolvimento e a adoção de novas tecnologias, como aquelas lastreadas em RNA interferente (RNAi), não apenas na medicina, mas em outros setores, como a agricultura.

 

RNAi

                As vacinas contra a Covid-19, que são baseadas em RNA, constituem-se de fragmentos de RNA envoltos por nanopartículas lipídicas. Após ingressar nas células, o RNA provoca a produção de proteínas, que são reconhecidas pelo sistema imunológico humano, o que deflagra uma série de eventos que previnem ou mitigam as infecções e seus sintomas. Mas, assim como o RNA serve para provocar a síntese de uma proteína, também pode determinar a não produção de uma proteína específica. É o que se chama de RNA interferente, ou RNAi. Para aprofundar na compreensão dessa ferramenta, recomendamos um texto didático, publicado em bitly.ws/qWn7.

                A utilização do RNAi representa um degrau mais avançado em relação à engenharia genética clássica. Essa, apesar de sua enorme segurança, encontrou barreiras tais que encareceram e atrasaram a adoção de muitas tecnologias. Nem tanto na Medicina, mais na agricultura. Algumas dessas tecnologias avançadas pereceram pelo caminho, pelos elevados custos, a enorme burocracia regulatória e a oposição acirrada de alguns ativistas. Ironicamente, muitas delas poderiam ter surgido naturalmente, por meio das mutações, porque essa abordagem é muito usada pela Natureza para diversificação genética.

                Aliás, é importante pontuar que os cientistas não inventaram as ferramentas biotecnológicas ou de engenharia genética, simplesmente copiaram e aprimoraram o que a Natureza já faz, há milhões de anos. Devido ao ativismo anticientífico, o desenvolvimento tecnológico, em escala global, concentrou-se nas maiores empresas do gênero, pois elas podem suportar o custo imposto pela burocracia, aguardar por mais tempo sem incorrer em insolvência e investir fortemente em informação correta.

                Vislumbramos que, no futuro próximo, a tecnologia do RNAi não ficará restrita à medicina, será amplamente usada como medida fitossanitária. Particularmente entendemos que será muito mais usada na agricultura que em outras áreas, onde não se restringirá à proteção das plantas e dos animais. Por exemplo, com as mudanças climáticas em curso, cada vez mais enfrentaremos eventos climáticos extremos, mais frequentes e de maior intensidade. Existem inúmeros grupos de cientistas que estão investigando o uso de RNAi para estimular genes de resposta das plantas quando enfrenta um estresse hídrico. Com essa resposta da planta ao RNAi, a produção em ambiente de escassez de água será muito maior. Significará um grande passo para evitar perdas de centenas de milhões de toneladas de alimentos, todos os anos. Essa tecnologia valerá bilhões de dólares e pode ser uma das melhores estratégias para enfrentar o impacto das mudanças climáticas sobre a produção agrícola.

 

Protegendo as plantas com RNAi

                É sabido que existem profundas diferenças entre os sistemas imunológicos de animais e plantas. A Natureza conferiu às plantas a possibilidade de se defenderem de agressões externas, tanto por mecanismos estruturais, quanto pela indução da produção de substâncias que a protegem do invasor, seja ele vírus, inseto, fungo, bactéria ou nematoide. O que inclui um sistema de vigilância para detecção de ameaças, a sinalização para produção de substâncias de defesa e até mudanças cromossômicas, conforme publicação na revista Nature (go.nature.com/35Ll35c).

Abundam artigos na literatura científica demonstrando como o RNAi pode ser usado para auxiliar as plantas a enfrentar doenças. Um exemplo didático mostra como as plantas podem sobreviver a uma infestação usualmente letal, causada pelo Luanglongbing (greening dos citrus), como descrito em bit.ly/360mk8y.

Entrementes, uma das características das moléculas de RNA é a sua instabilidade. Elas se degradam muito rapidamente, quando expostas às vicissitudes do ambiente externo, ou mesmo após ingressar nos organismos que o recebem, por conta das enzimas (RNAses). Além disso, ao contrário da vacinação em humanos, que é um ato específico para cada indivíduo, é simplesmente impossível injetar a dose requerida de RNAi em cada planta! Assim, um dos principais desafios enfrentados pelos cientistas é como levar o RNA aos tecidos das plantas de forma íntegra, para que possa desempenhar sua ação benéfica.

 

Transporte do RNAi

                Usando um invólucro de substâncias lipídicas – como nas vacinas – ele seria destruído pelo surfactante necessário para obter boa cobertura quando pulverizado sobre as plantas. Dessa forma, o RNA se degradaria antes mesmo de ingressar nas células vegetais. Diversos grupos de cientistas estão buscando soluções para o repto. Uma abordagem bem-sucedida foi obtida nos estudos da equipe do Dr. Chonprakun Thagun (Universidade de Kyoto, Japão). O uso de peptídeos foi a chave da solução pois, que permite utilizar um surfactante, para facilitar a passagem das nanopartículas contendo RNA através da superfície cerosa das folhas das plantas, sem que ocorra degradação do RNA. Seus resultados são muito recentes, publicados em fevereiro de 2022 (bit.ly/3pKKE5m).

Os pesquisadores japoneses criaram uma plataforma de elevado desempenho, para introjetar ácidos nucleicos nass plantas, criando um envoltório para as moléculas de RNA, composto por nanoccápsulas de peptídeos. A translocação de complexos de ácido nucleico/peptídeo depende das características físico-químicas dos peptídeos, controlada por um mecanismo de absorção, que ocorre através dos estômatos.

Os testes demonstraram que essa estratégia redundou em sucesso absoluto e representa um grande avanço para solucionar o problema. Ao final dos experimentos, os cientistas observaram 80% de silenciamento de genes-alvo, seja pela introdução de moléculas de RNAi nos núcleos das células, ou por um sistema que envolve os cloroplastos.

 

Abrindo as portas de um futuro melhor

                O uso de RNAi tem o potencial de ser uma das tecnologias mais disruptivas já descobertas pelos cientistas. Seu potencial de uso é enorme, não se restringe ao uso na proteção de plantas ou animais contra pragas. Servirá para protege-los de estresses abióticos, para aumentar teores de substâncias benéficas ou para eliminar a produção de moléculas tóxicas ou indesejáveis em plantas que produzem alimentos.

                Em qualquer destas situações, representará enorme avanço e seu valor de mercado é estimado em dezenas de bilhões de dólares anuais. Apesar de parecer complicado, a tecnologia do RNAi pode ser perfeitamente dominada pelos grupos de pesquisa brasileiros, colocando nosso país na vanguarda global da tecnologia agrícola sustentável, fortalecendo nossa competitividade no mercado.

                Eis porque é fundamental o entendimento de sua importância pela sociedade e pelos atores do agronegócio, pressionando as instâncias governamentais para que implementem políticas públicas de suporte à pesquisa e desenvolvimento de tecnologias de RNAi que beneficiem nosso país, gerando mais renda, empregos e divisas, evitando pagamentos vultosos de royalties para estrangeiros.

 

O autor é Engenheiro Agrônomo, pesquisador da Embrapa Soja e membro do Conselho Agro Sustentável.

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