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Bálsamo de jaca


Decio Luiz Gazzoni

Aos poucos a ciência resgata e comprova conhecimentos centenários, que compõem a cultura popular e a farmacopéia dos pajés. Recentemente, um cientista brasileiro isolou uma substância com propriedades anti-ofídicas, centenas de vezes mais potente que os soros convencionais. A substância foi extraída de uma das conhecidas "garrafadas" vendidas em feiras populares, indicada para picada de cobra.

 

A pesquisa

A equipe liderada pela Dra. Maria Cristina Roque Barreira (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP), tem estudado o aproveitamento medicinal da jaca. Este time estuda um grupo de proteínas, as lectinas, e seu efeito sobre os mamíferosmais de uma década. Uma destas pesquisas concluiu que uma proteína presente na semente da jaca, a lectina KM+, diminui o tempo de recuperação e evita a necrose de tecido em queimaduras de pele. A lectina KM+ provoca a concentração de células de defesa, quando em contato com algum ponto lesado do organismo. Um dos pesquisadores envolvidos no estudo entendeu que deveria ser dado um sentido prático às descobertas científicas. Com este foco, os pesquisadores passaram a estudar a hipótese de que a concentração de células de defesa em uma lesão, quando em contato com a lectina KM+, poderia evitar as infecções oportunistas, decorrentes de queimaduras.

 

Cobaias

Estabelecida a hipótese, a mesma foi testada em ratos de laboratório. Os animais foram lesados com queimaduras e, sobre o local da ferida, foi aplicada uma pomada, preparada com as sementes de jaca, contendo a lectina KM+. Para gáudio dos cientistas, o tratamento foi tão eficiente, que ocasionava uma recuperação antes que houvesse uma infecção do tecido. Verificou-se que a pomada acelerava a regeneração do tecido queimado, evitando a necrose. Aprofundando as pesquisas, os cientistas descobriram que a lectina KM+ induz maior multiplicação celular, assim como aumenta a produção de colágeno e estimula a formação de novos vasos sanguíneos, permitindo a irrigação do local afetado pela lesão.

 

Bônus

A natureza mostrou ser, mais uma vez, a grande fonte de inspiração da Ciência. Os testes foram repetidos inúmeras vezes, variando a intensidade das queimaduras provocadas nos ratos, com diferentes extensões e profundidades de lesões. Ao final, a pomada de jaca, contendo a lectina KM+, foi 80% superior aos resultados obtidos na sua ausência. Os cientistas também foram agraciados com outra descoberta importante: ao contrário do processo natural de cicatrização, que recompõe a parte lesionada com células de tecido conjuntivo, a regeneração ocorre por multiplicação das células sadias do tecido remanescente no entorno das lesões.

 

Larga escala

A primeira etapa da pesquisa está concluída, tendo sido comprovada a utilidade terapêutica de uma substância presente na semente da jaca. O próximo desafio é obter o produto em larga escala. A jaca não é uma fruta com cadeia produtiva organizada, que permita a garantia de oferta do produto ao longo do tempo. Para resolver o problema, os cientistas do laboratório de Biologia Molecular de Plantas da USP identificaram o gene da jaca responsável pela lecitina. Esta etapa já foi superada e o gene foi introduzido em uma bactéria, inócua aos seres vivos, e de reprodução fácil e barata em laboratório. Assim, a bactéria passa a ser uma usina viva para produção do medicamento. Os estudos com a bactéria transgênica, que virou uma biofábrica de remédio, já iniciaram. Os testes prosseguem, usando a substância agora obtida da bactéria, inicialmente em ratos. Posteriormente, serão utilizados voluntários humanos para comprovar o efeito medicamentoso observado nos ratos. Finalmente, se todas as pesquisas, inclusive de biossegurança, forem bem sucedidas, a tecnologia poderá ser adotada em larga escala, permitindo à sociedade auferir os benefícios de mais uma descoberta derivada da biotecnologia.

O autor é Engenheiro Agrônomo, pesquisador da Embrapa Soja. Homepage: www.gazzoni.pop.com.br

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