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Alimentando o espírito


Decio Luiz Gazzoni

Sempre afirmei que alimentação adequada não depende de oferta de alimentos, porém de capacidade financeira para adquiri-los. Enquanto em Pindorama, o Fome Zero mais parece um Marketing 100 que uma solução para o problema da fome; enquanto cientistas desenvolvem o arroz dourado, para fornecer alguma vitamina A e ferro aos desnutridos da África e da Ásia, a fim de evitar que fiquem cegos ou “economicamente imprestáveis”, no Primeiro Mundo a prioridade é outra.

Alimento espiritual

Superada a fase da fome, a etapa da gula, a síndrome da saúde ou a necessidade nutricional, o alimento alcança status espiritual e surge a indústria da alimentação do bem-estar. Os empresários estão descobrindo que alimentos do bem-estar podem ser “big business” - em especial quando vêem seu negócio em risco pela onda de alimentos funcionais. As justificativas vão desde difusas questões de espiritualidade e publicidade sugestiva, induzindo ao uso de alimentos de propriedades imponderáveis, perceptíveis apenas por “espíritos transcendentalmente elevados”, seja lá o que isso significar. E quem não quer ser um espírito transcendentalmente elevado? Bem, tirante quem ainda está na fase fome 10, poucos restam.

Cronobiologia

Os empresários partiram de algumas verdades científicas para criar o sorvete feliz e os biscoitos anti-stress. Existem transmissores nervosos associados à sensação de bem-estar (endorfinas), como a melatonina, a dopamina e a serotonina. A teoria da cronobiologia estabelece os horários associados com maior produção de determinados hormônios, enzimas ou neuro-transmissores. Essa teoria explica por que estamos sonolentos em determinados horários e ativos em outros, alegres ou sisudos, concentrados ou distraídos.

Melatonina

Conhecida como hormônio do sono (e do bom humor), essa substância é utilizada para combater o “jet lag”, ao final de longas viagens de avião. Transformando essa evidência em fato empresarial, após uma noite repousante, a vaca é ordenhada de madrugada, quando a concentração de melatonina é maior. Já é possível antever o próximo passo: se o “leite melatonina plus” cair nas boas graças do consumidor, os biotecnologistas aumentarão a produção de melatonina nos animais e nas plantas! Logo teremos a soja do riso, a beterraba soporífera, a maçã anti-stress, o pêssego do tríplice orgasmo, etc.

Florais

A criatividade empresarial é ilimitada. Na Escócia, um fabricante adiciona essência de orquídeas ao sorvete, afirmando que as pessoas que o ingerem sentem-se mais felizes. Por enquanto, nada existe de científico estabelecendo uma conexão de causa e efeito. Mas, as vendas estão sendo alavancadas pela novidade - que faria jus ao gênio inventivo de Duda Mendonça - pois a sugestão de que a pessoa se sente mais feliz após tomar o sorvete a obriga a perder o medo de sentir-se feliz, para não parecer trouxa aos olhares alheios. Para conferir uma aura espiritual ao produto, apenas trabalhadores felizes podem elaborar o sorvete. Ao adicionar a essência ao sorvete, o empregado tem a obrigação contratual de pensar somente em coisas boas... e ser feliz!

Cogumelos

Embora não seja propriamente um “santo alimento”, algumas espécies de cogumelos, que possuem propriedades alucinógenas, estão na mira de empresários. Isso porque os homens de negócios descobriram que a legislação britânica não tipifica como crime a produção, a venda ou o consumo de cogumelos, desde que não tenham sido modificados de seu estado natural. Ou seja, cogumelos são vendidos sem processamento, aproveitando a brecha legal. O público que aderiu à novidade é delimitado, porém de alto poder aquisitivo e ávido por justificativas complexas e transcendentais.

Negócio divino

De acordo com a BBC, um dos produtores desse tipo de cogumelo afirma que “somos bem idealistas já que esta é uma oportunidade de montar um negócio fora dos moldes capitalistas tradicionais”. Essa empresa já sub-segmentou o mercado, oferecendo cogumelos apropriados para cada ocasião, incluindo uma espécie tailandesa “altamente espiritualizada”. Os adeptos não relutam em pagar quase R$10.000,00 ao quilograma, por um alimento tão espiritualizado e voltado ao bem-estar! Bem, como falei no início, é tudo uma questão de prioridades: sensação de bem estar em país pobre ainda é barriga cheia. Enfim, está posta mais uma oportunidade para o agronegócio brasileiro: o alimento espiritual!

O autor é Engenheiro Agrônomo, pesquisador da Embrapa Soja. Homepage: www.gazzoni.pop.com.br

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