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A soja RR e as medidas provisórias permanentes


Decio Luiz Gazzoni

Nos EUA, mais de dois terços da área de soja é semeada com soja resistente ao glifosato RR) e, na Argentina ela é utilizada em, praticamente, toda a área. Para o mercado internacional, enquanto comoditie, o novo padrão estabelecido é a soja RR, sendo as cotações a ela referenciadas. O Brasil era o único grande produtor de soja do mundo que, oficialmente, não cultivava soja RR, até o surgimento da série de Medidas Provisórias. A MP 223 libera, para plantio na safra 2004/2005, a “semente” em poder dos agricultores, para seu próprio uso.

 

Indecisão

O remendo das MPs não soluciona o “imbróglio” da biotecnologia agrícola. Enquanto os medicamentos biotecnológicos encontram livre trânsito, os produtos agrícolas são questionados. Cabe refletir sobre o ensinamento do padre Ricci, superior geral dos jesuítas, quando pressionado a alterar profundamente a constituição da Companhia de Jesus. “Sint ut sunt, aut non sint!”, decretou o jesuíta (“Que as coisas sejam como são ou então não sejam”). Insisto – em coerência com o que sempre defendi – que o Brasil não pode ficar, eternamente, no acostamento das tendências mundiais. Ou bem nos engajamos na corrente dominante da biotecnologia (“sint ut sunt”), sem qualquer concessão em relação à biossegurança, ou investimos, fortemente, nos nossos institutos de pesquisa, para pavimentarmos um caminho alternativo (“aut non sint”). O que não podemos é ignorar que a competitividade no comércio internacional repousa em tecnologia competitiva. Postergarmos a decisão significa adiarmos a realização ou declinarmos do nosso potencial agrícola, matriz de emprego, renda e desenvolvimento.

 

Ágio e Deságio

Caso houvesse alguma perspectiva de prejuízo com a soja RR, a pressão dos agricultores não seria tão avassaladora. E o Governo Federal, fortemente dependente das divisas da exportação de soja, não a liberaria. Após debruçar-se sobre as cotações dos últimos cinco anos, o analista Flávio França Jr., da Agência Safras e Mercados, demonstrou que o mercado não trabalha com ágio para soja convencional ou com deságio para a transgênica. Observe que a Argentina mais que duplicou a venda de soja à Europa, coincidindo com o plantio de soja RR, que representa 99% da sua produção. Tanto a Europa quanto a China, maiores compradores mundiais, exigem que o país exportador certifique que a partida de soja seja transgênica ou convencional, para efeito de rotulagem, sem que isto altere a decisão de compra ou a cotação da partida de soja. Logo, não existe constrição econômica ou negocial que impeça a regulamentação definitiva do uso de OGMs na agricultura brasileira.

 

Saúde

Os opositores da soja RR denunciam não existirem evidências científicas, definitivas, de que a soja RR não causa problemas à saúde humana. Em contraposição, seus defensores alegam que não existe qualquer evidência de que algum problema de saúde possa decorrer do consumo de soja transgênica. Enveredando por outra trilha de raciocínio, é incontestável que o tamanho do mercado, os prêmios e os descontos são determinados pelo consumidor, por avaliações objetivas ou por percepções subjetivas. O avanço extremamente rápido da soja RR, (mais de 50% da soja mundial), deixa transparecer que a quase totalidade da opinião pública não vislumbra riscos à saúde, decorrentes de seu consumo. Em tempos de culto à saúde, se dúvidas persistissem, a opinião pública mundial enxotaria do mercado os alimentos derivados de OGMs, incluindo a soja RR. O consumidor foi tranqüilizado pelo “efeito de massa”, representado por mais de 300 milhões de toneladas de soja transgênica, consumidas nos últimos anos, sem que aflorasse qualquer suspeita de efeito alergênico ou outro distúrbio de saúde. Lembrando que a soja transgênica, produzida nos EUA, na Argentina ou no Brasil, é consumida, primordialmente, nos países do Primeiro Mundo. Seus cidadãos foram as cobaias, sujeitos a eventuais riscos à saúde. Não apenas os órgãos sanitários dos países ricos permitiram que o “teste” ocorresse com sua população, como não houve uma reação civil cuja magnitude impedisse esse “teste”.

 

Ambiente

O principal problema ambiental aventado é o fluxo gênico. No Brasil, o risco prático de que esse fenômeno venha a ocorrer é nulo. A soja é uma planta autógama e a polinização ocorre com a flor ainda fechada. O pólen, após a abertura da flor, possui uma viabilidade muito baixa. E a polinização entre flores necessita do auxilio de polinizadores, escassos na cultura. Ou seja, mesmo entre cultivares de soja, a polinização cruzada seria muito difícil. A probabilidade de o pólen da soja (Glycine max) fecundar outras espécies vegetais, é ainda menor. Não existem parentes botânicos da soja no Brasil, com compatibilidade cromossômica, que torne a hibridação viável. Este poderia ser, eventualmente, um problema no Nordeste da China, onde existem espécies de soja selvagem. Similarmente ao exposto para o tópico saúde, em uma quadra da civilização em que a proteção ambiental é um “cult”, a percepção da maior parcela da opinião pública é de que não existem perigos palpáveis pelo cultivo da soja RR, paradoxalmente podendo até ser favorecida, pela menor descarga de herbicidas no ambiente – o que levou ao fim da moratória dos OGMs na Europa. Portanto, a restrição à regulamentação definitiva não se prende às questões ambientais ou de saúde pública.

 

Vantagens

Propalam-se, de uma parte, ganhos financeiros com o cultivo de soja RR (por menor uso de herbicidas) e, de outra, que a mesma apresenta menor produtividade. Os institutos de pesquisa brasileiros nunca puderam comprovar qualquer das afirmativas. Com a legalização, essa dúvida poderia ser elucidada, comparando-se produção, receitas e despesas, em similaridade de condições. Pessoalmente, entendo que a vantagem da soja RR é a simplificação do controle de plantas daninhas, menos dependente de tecnicalidades e de condicionamentos de solo, clima e dimensionamento de parque de máquinas. Em relação à produtividade da lavoura não é lícito supor qualquer vantagem da soja RR, porque a tecnologia resume-se à resistência ao herbicida glifosato, não interferindo com outras características agronômicas.

 

Primeiro dilema

Removidas as constrições legais e reduzidas as angústias pertinentes à saúde e ao ambiente, entendo que o primeiro dilema da soja RR legalizada será o pagamento da taxa tecnológica ao detentor da patente. O Brasil será a arena para o primeiro teste real, em escala mundial. Na Argentina não há cobrança da taxa tecnológica e, nos EUA, qualquer valor cobrado é fictício, pois o subsídio encarrega-se de anular o impacto sobre o custo de produção. Comenta-se no mercado que o valor seria próximo de US$17,00/ha. Entendo ser o valor elevado, significando uma apropriação quase integral do eventual ganho financeiro com o menor uso de herbicidas. Em decorrência, antevejo uma ameaça ao sistema de sementes brasileiro, fortemente dependente da soja. Para evitar o pagamento da taxa tecnológica, incidente sobre a semente, o produtor utilizar-se-á da permissão legal de produzi-la para seu uso. Por esse raciocínio pode-se especular, também, que fica entreaberta a brecha para comercializar, ilegalmente, a semente assim produzida, sonegando impostos, roialties e a própria taxa tecnológica.

 

Segundo dilema

Desde o surgimento da soja RR, manifesto minha preocupação quanto ao desenvolvimento de plantas invasoras resistentes ao glifosato. A pressão de seleção exercida sobre as invasoras será de tal ordem que, em pouco tempo, seria possível surgir ervas daninhas resistentes ao glifosato, em grande escala. Esse fenômeno indesejável não é novidade nem é inevitável. Plantas daninhas resistentes ao glifosato foram identificadas nos EUA e na Argentina. Os agricultores deverão atentar para o manejo de plantas daninhas, executando rotação de culturas, diversificando formas de controle, alternando cultivares convencionais e transgênicas e, inclusive – se for o caso – variando a cultivar de soja transgênica, quando outras opções estiverem disponíveis. O agricultor relapso corre o risco de enormes prejuízos financeiros e muitas dificuldades para conduzir sua lavoura. Mais do que nunca, vale a velha máxima: consulte o seu agrônomo!

 

O autor é Engenheiro Agrônomo e pesquisador da Embrapa Soja. Homepage www.gazzoni.pop.com.br

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