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A pegadinha hídrica


Decio Luiz Gazzoni
Paul Joseph Goebbels foi o ministro da Propaganda de Adolf Hitler na Alemanha Nazista. A sua fabulosa capacidade de organizar movimentos e de exprimir as ideias Nazistas levou-o a ser o preferido do Führer. Muitos autores consideram Goebbels o maior propagandista político que já existiu, independente das causas malignas pelas quais pugnou. Mas, o que interessa para este artigo é a frase que o consagrou: “wiederholt hundert mal eine Lüge, dann wird sie zur Wahrheit”, a qual, de acordo com o meu amigo, Engo. Agro. Arnildo Pott, significa: “repitam cem vezes uma mentira, então ela se torna verdade”. Foi com esta técnica que Goebbels convenceu o povo alemão que a sua salvação estava no Nazismo e em Hitler. Tanto repetiu o bordão que o povo acreditou. As nefastas consequências,

como o Holocausto, viraram História.

Sessenta e sete anos se passaram desde a morte de Goebbels, mas seus ensinamentos, aparentemente, continuam vivos. De repente (e não mais que de repente!) surgiram números estarrecedores de consumo de água na agricultura, larmando a opinião pública. Seus autores denominam-na pelo pomposo nome “Pegada Hídrica”, uma derivada da “Pegada de Carbono” das emissões de gases de efeito estufa. Do alto dos meus 60 anos, que já viram muita água rolar sem ser debaixo da ponte, desconfio que se trata de uma “pegadinha hídrica”, destinada a criar uma futura barreira ambiental à exportação de produtos agrícolas de países como o Brasil. O problema é que inocentes a assumiram como verdade e dogma, repetindo-a feito mantra, sem dialeticamente questioná-la, ou ao menos, como manda qualquer manual de redação, contextualizando-a com fontes fidedignas.

Café e picanha

A primeira referência que vi sobre o tema foi num telejornal em que, durante longos e irritantes três minutos, o âncora e o repórter se transmutaram em oráculo para afirmar que a agricultura consome 92% da água doce do planeta! Para elaborar um cafezinho – aquele de 30 mililitros – 140 litros de água haveriam sido consumidos. Feito deus ex-machina, arrematou alguma coisa como: “...para produzir um quilo de queijo é preciso 5 mil litros de água; um quilo de arroz, 2,5 mil; um quilo de pão, 1,6 mil litros; um litro de leite, mil litros; um litro de cerveja, 300”. Bem, ao menos a cerveja pesa menos na consciência da gente!

Em outro telejornal, o apresentdor tascou sem dó nem piedade: para produzir uma picanha, lá se foram 15.000 litros de água. Aí matou o gaúcho: se a picanha é tudo isso, que dirá do mate nosso de cada dia? Tchê, e o carrê da ovelha gasta menos? Fui seguindo a trilha dos assaques e, pasmem os senhores, quem diria? Cheguei no site da WWF. Mas ainda não era o final da história. A WWF apenas usou, no seu sermão da água, o texto bíblico reinterpretado por uma ONG absolutamente obscura. Fui ao site da Internet desta ONG e, de saída, já me solicitaram uma doação em dinheiro. Como bom carcamano, recusei. Então me ofereceram um curso internacional de pegada hídrica, coordenado pelo Diretor Científico da ONG. São dois dias de curso, pouco tempo, claro, mas a “mordida” é de € 2.500,00 (R$6.107,36, pela cotação de 1/4/12). Recentemente, passei um mês na Europa, vi o tamanho da crise e do desemprego por lá, mas não havia presenciado tanta criatividade.

Boi da seca

Em março passado visitei o Mato Grosso, passando uma semana enriquecedora junto a produtores rurais de Sorriso, no norte do Estado. Além de dominar um solo inóspito, tornando-o produtivo, os gaúchos que para lá migraram aprenderam a dominar o clima. Dominar no sentido de que, estão conseguindo engordar o gado durante o inverno de Mato Grosso, quando não chove de maio a setembro, e sob um sol inclemente. Não há erro, os bois continuam engordando (não apenas mantendo o peso) durante uma seca de cinco meses. Tudo graças à tecnologia da Embrapa de Integração Lavoura, pecuária e Florestas (ILPF). Os dirigentes da tal ONG poderiam usar parte do valor de uma das taxas de inscrição do curso, e passar três dias em Sorriso ou Sinop, em pleno julho. Veriam uma pastagem de braquiária na altura do cupim do boi. Cultivada no seco, sem irrigação. E veriam a boiada engordando. Claro, boi também bebe água, para isto existe um açude represado na baixada das propriedades. Eu me ofereço como guia, para saciar a curiosidade de acompanhar o cálculo demonstrando que o boi, que é enviado ao frigorífico com 24 meses e peso de abate superior a 500 kg, consumiu 500 x 15.400 = 7.700.000 de litros de água. Lembrando que, por 10 meses, o boi se alimentou de uma pastagem sobre a qual não choveu uma gota sequer!

Mas foi água da chuva, diria ele! Não vou discutir se o boi consumiu ou não os 7,7 milhões de litros de água, se um quilo de café demanda 3 mil litros, isto não é boa Ciência. Para mim o importante é o seguinte: qual seria o uso alternativo da água da chuva? Se a raiz do cafeeiro não houvesse absorvido a água - parte sendo evaporada para cumprir o seu ciclo natural, e parte aproveitada pela planta mas, que, ao final também ingressaria no ciclo hidrológico - que uso outro uso teria esta água? Um apóstolo da tal ONG iria para o campo com uma bacia para coletá-la? Ele exorcizaria o boi: “...vade retro bos, obedire me, pare de consumir água! Mas teria que responder a pergunta do boi: - E se o pasto não usar a água para crescer e me alimentar, para que serve a chuva? E também responder a minha pergunta: qual a sua real intenção ao alardear números estratosféricos de consumo de água na agricultura?


Europa, um mau exemplo

Para chegar aos tais 92% de consumo de água doce pela agricultura, o sumo pontífice da pegada deve ter se valido de números obtidos na agricultura da Europa. Todos sabemos que o Velho Continente é o paradigma universal da eneficiência econômica na agricultura: retirem-se os subsídios e seus agricultores não aguentam dois anos de competição conosco. Por isto gastam muito adubo, veneno e... água! Tudo é subsidiado. Mas, mesmo lá, a maior parte da água vem da chuva e cumpre um ciclo hidrológico natural, que existe há milhões de anos. Antes dos ensinamentos de Goebbels, antes dos discípulos da ONG da pegadinha hídrica nascerem, e antes que eles encontrassem seguidores em Pindorama, os quais reverberariam suas palavras da releitura do Apocalipse, sem perceberem tratar-se de falsos profetas.

Ao visitar o site da tal ONG, eu, que sempre achei que água enferruja, descobri que consumo mais de dois milhões de litros de água por ano. Mas bah, tchê, isto é mais que a água da piscina do sítio do Tibúrcio, que mede 10m de largo, 50m de prancha e tem 4m de fundo. Como consegui tomar tudo isto em um ano? Se ainda fosse cerveja...

Para terminar, um ensinamento que se não veio do cérebro satânico de Goebbels, bem que poderia ter vindo: é muito fácil contar mentiras dizendo apenas a verdade. Esta historieta da pegada hídrica é um exemplo didático. Em algum caso específico, pode ser que a picanha precisou de 15.700 litros de água – quase tudo de chuva - até chegar no espeto. Daí a insinuar para a opinião pública que isto foi consumo, que a água desapareceu, que a agricultura é um sumidouro de água, que concorreu com outros usos, que esgotará a água do planeta, que criancinhas morrem de sede para que bebamos o cafezinho...

Os ossos de Goebbels devem estar a fumegar no túmulo, pois foi superado!

O autor é Engenheiro Agrônomo (http://dlgazzoni.sites.uol.com.br)

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