REPORTAGEM ESPECIAL
Nunca um tema foi tão debatido entre produtores, parlamentares, cientistas, ambientalistas, entidades rurais, autarquias, população em geral e a imprensa como a liberação da soja transgênica. Por um lado os produtores, mais especificamente do Rio Grande do Sul onde aproximadamente 90% deles cultivam a oleaginosa geneticamente modificada, erguem a bandeira a favor da transgenia com a justificativa da redução nos custos, e do outro ambientalistas alertam que esta ciência pertence apenas a uma multinacional. Estes também defendem a realização de mais pesquisas sobre o assunto para impedir possíveis danos ao meio ambiente e ao ser humano.
Com a disseminação do plantio de transgênicos principalmente no RS e tendo os ambientalistas como principais opositores, o governo federal precisou resolver temporariamente a questão. Para isso, editou duas Medidas Provisórias somente este ano para tentar amenizar a situação. Publicada no Diário Oficial da União no início de 2003, a MP 113 foi a primeira a liberar a comercialização da safra, porém manteve o veto ao plantio. A segunda foi a MP 131, aprovada no final de setembro, que além de liberar a comercialização na safra 2003/04 também permitiu o plantio de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) somente para esta temporada. Esta Medida Provisória foi aprovada pelo vice-presidente, José Alencar, e convertida em lei pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, que a sancionou no dia 15 de dezembro após ter sido votada na Câmara e no Senado.
Como o governo federal não chegava a um consenso antes da aprovação da MP 131, alguns estados brasileiros decidiram elaborar leis próprias para regularizar o assunto. Em meados de outubro, o Estado do Paraná foi o primeiro a proibir o cultivo, a manipulação, a importação, a industrialização e a comercialização de OGMs, além de criar o Conselho Técnico Estadual de Biossegurança (CTEBio). Na lei ainda continha a proibição em utilizar o Porto de Paranaguá, localizado no PR e maior exportador de soja do país, para embarques e importação de Organismos Geneticamente Modificados, o que proporcionou discussões entre o governo estadual e o federal.
O superintendente da Administração do porto, Eduardo Requião, chegou a suspender no final de outubro as exportações de soja armazenada em silos públicos e privados no Paraná. A decisão do governo estadual foi estabelecida após a denúncia de que a soja transgênica estava sendo embarcada junto à convencional. Com isso, várias empresas exportadoras em que foram detectadas soja alterada geneticamente foram proibidas de comercializar. Até mesmo a soja do Paraguai, que utiliza o porto para escoar a produção, teve os embarques suspensos. Filas imensas de caminhões foram formadas nas divisas entre o Paraná com Santa Catarina, São Paulo, Mato Grosso do Sul e o Paraguai a fim de realizar exames para detectar possíveis cargas contendo OGMs.
O governo federal foi contra a decisão do Paraná e entrou na justiça para liberar os embarques. O Supremo Tribunal Federal (STF) considerou que o decreto presidencial se sobrepõe à lei aprovada pela Assembléia Legislativa paranaense. A lei estadual poderia causar um caos em fevereiro, quando começa a colheita e escoamento da safra brasileira de soja. Porém, em comunicado oficial, a Secretaria da Agricultura do Paraná contrariou a decisão e esclareceu que vai continuar com seu trabalho normal de fiscalização de sementes e grãos de soja nas barreiras e nas lavouras em todo o Estado. A decisão do STF não alterou em nada as medidas adotadas pelo Defis (Departamento de Fiscalização e Defesa Agropecuária).
Com a situação delicada entre o Paraná e o governo federal, a declaração do governador do Estado, Roberto Requião, sobre a aprovação da MP 131 em setembro causou polêmica. Segundo ele, "falta só liberar a maconha”. O vice-líder do governo na Câmara, Beto Albuquerque (PSB-RS), disse que o governador "passou dos limites. É inaceitável a comparação infeliz que ele faz sobre a droga, porque se tem alguém que entende de drogas deve ser ele, não nós do governo", rebateu.
Outros setores envolvidos com o assunto também se aliaram ao governador paranaense. O Partido Verde, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e o procurador-geral da República, Cláudio Fontelles, entraram com Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adin) contra a liberação da atual safra de soja transgênica. O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) divulgou uma nota afirmando que foi cometida "uma das mais profundas agressões aos direitos dos cidadãos brasileiros". Segundo a coordenadora-executiva do Idec, Marilena Lazzarini, o governo Lula, "além de não estar cumprindo seus compromissos de campanha, não cumpre sequer o que ele mesmo determinou quando da edição da MP 113, isto é, que seria liberada apenas a soja daquela safra e que o assunto seria encaminhado ao Congresso Nacional".
Por outro lado, os produtores que plantam transgênicos se sentiram aliviados com a decisão do governo em transformar a MP 131 em lei. Segundo o presidente da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), Carlos Sperotto, a decisão trouxe novo ânimo aos produtores, visto que agora não podem mais ser considerados fora da lei. Até o dia 23 de dezembro, mais de 77.415 produtores do Rio Grande do Sul declararam que plantam soja transgênica, segundo dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento que está prestes a concluir o primeiro levantamento detalhado das áreas de plantio de soja geneticamente modificada em todo o país.
Este levantamento está sendo possível em razão da obrigatoriedade imposta na MP 131 para que o produtor assine o Termo de Ajuste e Conduta, declarando ser responsável pelo plantio de OGMs. A intenção do governo é traçar um mapa com lavouras transgênicas em todo o país. Esta emenda gerou controvérsias por parte dos produtores que não desejavam assiná-la. Outra medida polêmica da Medida Provisória foi quanto à cobrança de royalties da soja alterada geneticamente, a Roundup Ready (RR) da Monsanto, contrabandeada da Argentina por produtores gaúchos. A multinacional insistia na cobrança, mas o presidente Lula vetou o parágrafo único do artigo 09 que previa a aplicação de responsabilidade igualmente aos detentores dos direitos de patente sobre o uso da tecnologia da semente de soja.
Em entrevista exclusiva ao Portal Agrolink, o produtor rural e engenheiro agrônomo, Rogério Furian, do município de Cruz Alta, onde se concentra uma das maiores áreas de soja do Rio Grande do Sul, destacou a importância da liberação da soja transgênica para esta safra. Segundo ele, “a liberação nos coloca dentro da lei e a maioria dos agricultores prega em ser legalista”. Afirmou também que pesquisou sobre o assunto antes de realizar o primeiro plantio na safra 2005/06 e que a biotecnologia não pode ser ignorada. “Com o plantio da soja convencional era praticamente impossível controlar inços e invasoras, mas com os transgênicos a situação é diferente”.
Furian ressaltou que na safra 2005/06 çhegou a colher 42 sacas por hectare, sendo que a média naquela temporada não passou de 30 sacas. De acordo com ele, a produtividade vem aumentando a cada temporada. Em 2002/03 Furian colheu uma média de 55 sacas por hectare. Também disse que o plantio de OGMs reduziu os custos e hoje chega a utilizar 50% a menos em sementes em relação à primeira safra com soja transgênica.
Ele criticou a atitude de autoridades governamentais contrárias à liberação dos transgênicos. “Algumas decisões são tomadas por pessoas leigas no assunto e que estão atreladas a uma ideologia. Tenho certeza que daqui a algum tempo estaremos dando risada da situação que passamos e vamos ver que perdemos tempo”, salientou. Também lançou um desafio aos defensores da agricultura orgânica. “Eu já tentei fazer uma lavoura de soja orgânica e confesso que não é fácil, e gostaria que os ambientalistas fizessem uma lavoura de mil hectares orgânica e conseguissem produzir”, alfinetou. Atualmente Furian planta mil hectares com soja transgênica e 200 com milho convencional.
Em 2004 o assunto ainda será muito debatido. Certamente os produtores gaúchos vão pressionar o governo para que libere o plantio nas próximas safras. Além disso, foi adiada para este ano a votação do projeto de lei sobre biossegurança, retirando a urgência constitucional que daria agilidade à tramitação. Outro assunto polêmico diz respeito ao parecer definitivo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sobre o uso do glifosato na fase pós-emergente nas lavouras de soja transgênica, que hoje é proibido. A decisão só deve sair em 2004 e implica em um possível aumento, em 50 vezes, do limite de resíduos do agrotóxico glifosato na soja RR. Segundo a assessoria da Anvisa, o grupo técnico de trabalho ainda analisa as mais de cem sugestões apresentadas pelas iniciativas públicas e privadas, que deverão ser chamadas para debater o assunto antes de uma decisão. A liberação do uso do herbicida como pós-emergente na safra 2003/2004 depende da definição do percentual de resíduos.