Foi uma cena até agora nunca vista no sistema multilateral de comercio: o presidente de uma das nações mais pobres do planeta veio ontem à Organização Mundial de Comércio (OMC) pedir a eliminação imediata dos subsídios de US$ 5 bilhões por ano dados pelos Estados Unidos e outros países ricos a seus produtores de algodão.
"Não vim pedir tratamento diferenciado nem ajuda; vim pedir comércio leal", disse Blaise Campaoré, presidente de Burkina Faso, país pobre até pelos padrões da África Ocidental, afetado por persistentes secas, com poucos recursos naturais, solo frágil e onde 90% dos 12 milhões de habitantes trabalham na agricultura.
"Produzimos o quilo de algodão 50% mais barato que os concorrentes dos países em desenvolvimento, o que nos coloca entre os mais competitivos do mundo, mas sofremos o impacto negativo das subvenções ao algodão. Só os subsídios totais agrícolas norte-americanas superam em 60% o Produto Interno Bruto de meu país."
Um agricultor africano, Bassiaka Dao, completou: "Enquanto falam de liberalização, estão é nos massacrando", disse.
Foi a primeira vez que uma reunião do Órgão de Negociação Comercial, que prepara a atual negociação global de liberalização, recebeu um presidente. O presidente Blaise Campaoré e ministros do Benin, Mali e Chade colocaram na mesa proposta para que os países concordem na conferência ministerial de Cancun em eliminar as subvenções ao algodão.
Mas ele enfatizou que a situação é de emergência, porque a sobrevivência de 10 milhões de agricultores está em jogo. Por isso, jogou na mesa uma proposta complementar: que os países que dão subsídios aos seus produtores paguem compensações aos africanos pelas perdas de renda enquanto as subvenções não são eliminadas.
Ação política
"Essa é uma ação política, afinal sempre me dizem que a União Européia não corta subsídios por conta de sua política agrícola ou que os Estados Unidos dão dinheiro a seus agricultores contrariando as regras internacionais para se ganhar as eleições", disse ele.
O diretor-geral da OMC, Supachai Panitchpakdi, lembrou aos países que a atual rodada de negociações, afinal, é do desenvolvimento, numa indicação de que deveriam pelo menos analisar o que os africanos propõem.
A presença do presidente de Burkina Faso na OMC atacou o coração dos subsídios agrícolas, justamente na semana em que a União Européia (UE) se prepara a decidir se reforma ou não sua bilionária Política Agrícola Comum-PAC (ver abaixo).
Renda menor
Só que não foram poucos os que acharam em Genebra que Campaoré veio à OMC motivado pelos europeus para alvejar os Estados Unidos, o principal acusado: apenas 25 mil de seus agricultores recebem de US$ 3 bilhões a 4 bilhões por ano. Com isso, jogam os preços mundiais no chão e diminuem a renda de milhões de agricultores africanos. Nos últimos dois anos, a renda de exportação de algodão caiu 31%, enquanto a produção aumentou 14% na África.
O presidente africano veio acompanhado de uma enorme delegação, numa visita extremamente bem preparada por organizações não governamentais (ONGs). O material distribuído aos delegados e jornalistas faz inveja a qualquer país rico, pela organização, riqueza de detalhes e dos argumentos.
Indagado porque não denunciou formalmente os EUA na OMC, como fez o Brasil, Camaporé retrucou que a questão do algodão é diferente para os africanos. "Trata-se de um produto estratégico, cujas exportações pesam até 30% do total em vários casos", disse.
A delegação brasileira manifestou seu apoio total aos quatro países africanos, mas defendeu que a eliminação de subsídios para todas as commodities agrícolas e não apenas para o algodão.
Dentro das negociações
Já os principais acusados reagiram diferentemente. Os Estados Unidos defenderam ampla reforma na agricultura para cortar as subvenções, mas dentro das negociações e não em ação setorial. A União Européia (UE) "anotou" a proposta. E a China, que dá mais de US$ 1 bilhão a seus agricultores, prometeu continuar reduzindo o volume das subvenções.
Blaise Campaoré disse que, se a ação africana não der resultado em Cancun, os africanos podem então adotar a atitude brasileira, de denunciar os EUA na OMC, num processo que custa milhões de dólares só com advogados.
As estatísticas mostram que a ajuda direta dos governos a produção de algodão pelos 14 principais produtores aumentou de US$ 3,8 bilhões em 2000/01 para US$ 5 bilhões no ano passado. Assim, 73% da produção mundial recebeu ajuda, inclusive no Brasil, que tem uma briga contra os EUA por conta dos subsídios americanos.
"Tivemos que dar ajuda por causa da queda de preço provocada pelos americanos", argumenta um diplomata brasileiro.