CI

Disputa de terra marca Sorriso há 32 anos

Caso do americano Edmund Zanini ganha projeção, mas 'imbróglio', carregado de violência, é recorrente



Na janela havia nove buracos de bala e um bilhete: "seria uma pena morrer tão jovem". Era uma ameaça direta a Christopher, de 16 anos, o mais velho dos cinco filhos do americano Edmund Zanini. A sra. Zanini varria o pórtico da casa às nove da manhã quando viu as evidências do ataque. Àquela altura, já não era apenas estranho o fato de o cachorro da família ter desaparecido um dia antes, mas uma prova cabal do que estava explícito no restante do bilhete: ou a família deixava o Brasil ou aquelas balas teriam destino mais preciso. Foi em Cuiabá, em 3 de maio de 1977, e o sol daquele dia ainda não se pôs.

Um dos orgulhos de Nadir Sucolotti está de pé há 25 anos. "Pode passar ali. Fica perto da igreja. Tem alguns lá até hoje". Ele doou 50 paus de itaúba para a primeira leva de postes instalados em Sorriso (MT) quando o município, então um distrito de Nobres, sequer existia. E estão lá, solenes, alguns remanescentes desse time, dando um ar secular a uma cidade tão jovem. Na avenida Porto Alegre há poucos, mas o trecho da rua Outono entre a Porto Alegre e a rua dos Desbravadores é quase todo dos tais varapaus. Sucolotti, gaúcho como tantos outros que desbravaram o sertão de Mato Grosso a partir da década de 1970, cita a doação para com ela dizer: nós fizemos essa terra ser o que é.

Zanini e Sucolotti não se conhecem, mas estão em lados opostos de uma disputa bilionária. O americano reclama na Justiça uma área de cerca de 150 mil hectares em Sorriso, comprada em 1964, segundo seu relato. A saraivada de tiros, argumenta ele, ocorreu para intimidá-lo, o que abriria uma brecha para que as terras fossem ocupadas. O gaúcho é um dos dezenas de agricultores que se instalaram nessas mesmas terras no início da década de 80. Compraram de boa-fé, argumentam eles, as áreas inóspitas de gente que, assim como os atuais proprietários, jamais havia ouvido falar do tal americano.

O caso ganhou certa notoriedade no início da década de 1980, quando Zanini já havia cedido às ameaças e retornado para os Estados Unidos. Voltou-se a falar dele neste ano por conta de uma tentativa de conciliação entre as partes, da qual ainda se aguardam novos capítulos. As terras valem mais de R$ 1 bilhão e representam 25% de todo o território de Sorriso dedicado à agricultura.

No mesmíssimo 3 de maio de 1977, Zanini e a família fizeram as malas. Os trâmites burocráticos para a partida do Brasil, contudo, os seguraram no país por mais algum tempo - a casa, por exemplo, era alugada. O americano contratou um vigia para rodear a casa à noite. Até a partida a família estabeleceu-se em um único cômodo para se sentir mais segura. Fazia 17 anos desde o primeiro desembarque de Zanini no Brasil, 13 desde a compra das terras e 11 desde que a família havia chegado de vez. Os planos de criar gado, plantar milho, legumes e abacaxis ficariam, talvez, para outra hora.

Plano que vai, plano que chega, e um não tomou conhecimento do outro. Como lembra Sucolotti, "à noite, parecia uma banda de música, de tantos motores ligados". Ele conta e ri. "A primeira coisa que todo mundo fazia quando chegava aqui era abrir um poço artesiano. Depois, instalar um motor para geração de energia". Sorriso, em 1984, quando o gaúcho comprou sua terra na cidade, sequer existia como tal, já que foi desmembrada de Nobres apenas em 1986.

Da soma de iniciativas como a de Sucolotti nasceu Sorriso como tal. Nos últimos anos, ela notabilizou-se como a maior produtora de soja do mundo. Seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é o mais alto de Mato Grosso e o 201º do país - um feito notável para uma cidade que, há menos de três décadas, sequer existia. Suas ruas são asfaltadas mesmo nos bairros mais distantes. O Sorriso Esporte Clube já foi duas vezes campeão estadual de futebol. Até uma Miss Mato Grosso a cidade já elegeu. Foi Fernanda Frasson, em 2005.

O atirador - ou os atiradores - que alvejou a casa de Edmund Zanini jamais foi identificado. As terras de Sorriso foram retalhadas e revendidas ao longo dos anos. Em 1991, a Justiça manifestou-se: as vendas foram feitas com uma procuração falsa de Zanini. Foram condenados na ocasião Lourival Abraão Asse, Locival Antonio Vargas e o tabelião Renato Augusto Platz Guimarães pela da certidão falsa. O cartório que registrava a procuração, em Paranavaí (PR), mudou-se do centro para a periferia da cidade. Os registros foram levados para uma cabana de palha, sustenta a defesa de Zanini. A cabana pegou fogo. O americano chegou a conseguir o sequestro das terras na década de 1980, o que impedia negociações, mas ele foi suspenso por um ano. O sequestro foi posteriormente ratificado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Gaúcho como Sucolotti, o colorado Sadi José Beledelli passou dois meses acampado à beira do Ribeirão do Ouro quando chegou à ainda imberbe Sorriso. Nada havia de mácula na documentação das terras que em 1984 ele comprou de uma viúva de Maringá (PR). Acampado com o irmão, Célio, seu sócio até hoje na atividade agrícola em Sorriso, levantou do nada a vida que hoje tem em Mato Grosso. Constituiu família. Jamais tinha ouvido falar do tal americano que requer, sozinho, a propriedade sobre toda a terra da qual ele, Beledelli, e tantos outros têm cada um um naco. "Quanto essa terra já gerou de impostos nesses anos todos? Quanto essa terra já gerou de receita para o Estado?", questiona ele para, com a indagação, explicitar seu argumento. Da barranca do rio, com o irmão Célio, Beledelli ajudou a fazer de Sorriso a maior produtora de soja do mundo.

Chris, o filho mais velho de Edmund Zanini, meteu a mão na massa na empreitada capitaneada pelo pai. Da família, foi um dos que mais sofreu com o episódio dos tiros na janela. "Perdeu a fé na humanidade", diz Zanini. Foi a Chris a ameaça mais direta do bilhete deixado na casa em Cuiabá. Em parte, o pai credita ao episódio o suicídio do primogênito, ocorrido em 1981, no dia em que Chris completou 20 anos.

Apesar dos inúmeros pesares, o americano Zanini considera sua passagem pelo Brasil a mais feliz de sua vida. Sua defesa diz que ele não tem culpa do imbróglio e que os atuais proprietários têm que se ver com os fraudadores que o ludibriaram lá no passado.

Para Nadir Sucolotti, Sadi Beledelli e tantos outros, o caso, claro, é incômodo. Um americano que eles jamais viram diz ter sido o dono enganado das terras que eles compraram de boa-fé e pagaram dentro da lei, a partir da qual criaram uma importante cidade do nada. Se não têm culpa do imbróglio, sugerem que Zanini se veja com os fraudadores que o ludibriaram lá no passado.

Leia as Notícias Relacionadas:
- 'Naquela época tinha muito banditismo'
- Apenas mais um caso entre vários outros
 

Assine a nossa newsletter e receba nossas notícias e informações direto no seu email

Usamos cookies para armazenar informações sobre como você usa o site para tornar sua experiência personalizada. Leia os nossos Termos de Uso e a Privacidade.