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Sobre a Integração do Protocolo de Cartagena ao direito doméstico


Reginaldo Minaré

Com a sua promulgação pelo Decreto nº 5.705/06, publicado no Diário Oficial da União de 17.02.2006, o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança passou a integrar o ordenamento jurídico doméstico, uma vez que o artigo 3º do mencionado Decreto determinou o início de sua vigência na data de sua publicação.

Embora a regra brasileira que disciplina a recepção e integração de tratados internacionais não seja um primor em matéria de sistematização, um dos primeiros efeitos que podemos vislumbrar é o da revogação das disposições infraconstitucionais que sejam incompatíveis com o Tratado.

O Protocolo de Cartagena, que deve ser aplicado ao movimento transfronteiriço, ao trânsito, à manipulação e à utilização de organismos vivos modificados - OVMs que possam ter efeitos adversos na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica, levando também em conta os riscos para a saúde humana, dispõe, em seu artigo 2º.4, que nada no Protocolo será interpretado de modo a restringir o direito de uma Parte de adotar medidas que sejam mais rigorosas para a conservação e o uso sustentável da diversidade biológica que aquelas previstas no Protocolo, desde que essas medidas sejam compatíveis com o objetivo e as disposições nele presentes e estejam de acordo com as obrigações dessa Parte no âmbito do direito internacional.

Diante da regra brasileira de integração de tratado internacional ao direito doméstico, do comando contido no Protocolo e do fato de que o Brasil já contava com uma regulamentação interna aplicável ao objeto do Protocolo, resta evidente que a análise e identificação daquilo que é compatível entre o direito interno e a norma internacional incorporada, ou seja, do que é harmonizável e passível de coexistir mesmo quando aplicados ou exercidos simultaneamente, é indispensável para conhecer o que à nossa legislação interna foi acrescentado e o que foi revogado.

Entretanto, uma identificação clara e precisa do que é incompatível muito dependerá da elucidação de alguns conceitos que constituem o cerne do Protocolo de Cartagena, mas que ainda não foram devidamente delineados nem tiveram definidos seus respectivos campos de abrangência. Por exemplo, o texto do Protocolo determina que ele seja aplicado ao movimento transfronteiriço, ao trânsito, à manipulação e à utilização de OVMs. Em seu artigo 3º, que dispõe sobre as definições, o Protocolo estabelece que por movimento transfronteiriço se entende o movimento de um OVM de uma Parte a outra Parte. Porém, não define onde começa e onde termina esse movimento entre Partes para fins de aplicação da norma internacional. Já sobre os significados conceituais das palavras trânsito, manipulação e utilização, que trazem, cada qual, uma clara e diferente noção de ação, e sobre a exata limitação de aplicação de cada conceito, o Protocolo está ainda mais omisso até o momento.

Caso a abrangência de cada conceito dos verbos transitar, manipular e utilizar, atingir a totalidade das ações que eles indicam e que podem envolver um determinado OVM importado no território de uma Parte, o trabalho de análise de compatibilidade será hercúleo. Pois, por exemplo, um feijão geneticamente modificado pode deixar de ser um OVM apenas quando cozido pela dona-de-casa, já o milho pipoca modificado deixa de sê- lo quando estourado na panela e o tomate geneticamente modificado pode ir para o lixo sendo ainda um OVM. Assim, além dos conceitos acima abordados, o critério para análise e identificação de qual OVM pode ter efeito adverso na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica, levando em conta a saúde humana, representa outro ponto fundamental, pois apenas nesses casos será legitima a aplicação das normas do Protocolo.

Dessa forma, e considerando que nosso sistema de biossegurança é mais completo e até mais rigoroso que aquele estabelecido pelo Tratado, resta claro, com uma simples leitura dos textos da Lei 11.105/05 e do Protocolo, que a harmonização desses sistemas será tarefa difícil e que ainda não temos as condições necessárias para sua conclusão. Contudo, cabe ressaltar que o final desse exercício no âmbito doméstico não esgotará o trabalho. Vale lembrar, que embora o próprio Protocolo reconheça que o fato da norma doméstica ser mais rigorosa que o Tratado não constitua problema, visto que considerando o objetivo maior do Protocolo a situação pode ficar no âmbito do compatível, restará a dúvida sobre até onde uma Parte terá que suportar o maior rigor doméstico da outra Parte sem alegar que a norma rigorosa esteja funcionando como barreira comercial, e não como mecanismo de precaução para conter ações com OVMs que possam ter efeitos adversos na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica, levando em conta os riscos para a saúde humana.

 

 

 

Reginaldo Minaré

Advogado e Diretor Jurídico da ANBio

 

 

 

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