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O legado de Gregor Mendel


Gilberto R. Cunha

Poucas pessoas, na História da ciência, contribuíram tanto quanto Gregor Johann Mendel para a evolução do conhecimento e suas transformações em tecnologias, na forma que hoje conhecemos, em agricultura. Não foi por nada que as descobertas desse monge e botânico austríaco de origem tcheca passaram praticamente ignoradas pelos seus contemporâneos. Estavam além da sua época. Até mesmo o grande Charles Darwin, apesar de pioneiro em mostrar a importância da variação genética e sua influência na evolução das espécies, não foi capaz de explicar satisfatoriamente a questão da hereditariedade. E, ressalte-se, que Darwin foi contemporâneo de Gregor Mendel; mas, afortunadamente, passou batido pelas publicações de Mendel. Não obstante, o Darwinismo foi uma força dominante em biologia, no século 20.

As dificuldades para formular uma teoria genética, em pleno século 19, eram devidas a várias coisas. Entre elas: a falta de compreensão da variação contínua e descontínua e da interação com o ambiente. Sem falar que, na mesma época que Mendel realizou suas experiências, foi quando começaram os estudos da célula de forma mais aprofundada.

Johann Mendel nasceu em Heinzendorf, Áustria, em 22 de julho de 1822. Freqüentou o ginásio de Troppau e estudou dois anos no Instituto de Filosofia de Ormütz, depois Olomouc, hoje na República Tcheca. Em 1843, entrou para o convento dos agostinianos em Brünn, atual Brno, na época importante centro cultural. Adotou então o nome de Gregor e passou a estudar teologia e línguas.

Em 1847 ordenou-se e, em 1851, foi enviado pelo abade à Universidade de Viena para estudar física, matemática e ciências naturais, disciplinas que três anos depois passou a lecionar em Brünn. Nos jardins do convento, em 1856, Mendel iniciou as experiências com hibridação de ervilhas-de-cheiro. Com base em dez anos de estudo foi capaz de formular as leis relativas à hereditariedade dos caracteres dominantes e recessivos (Primeira lei: lei do monoibridismo e Segunda lei: lei da recombinação ou da segregação independente). Por esse motivo, para alguns, Mendel faz jus ao título de pai da genética.

Os resultados dessas pesquisas foram reunidos em Versuche über Pflanzenhybriden (Experiências sobre híbridos das plantas), de 1865, e Über einige aus künstlicher Befruchtung gewonnene Hieraciumbastarde (Alguns híbridos do Hieracium obtidos por fecundação artificial), publicado em 1869. Ambos apresentados à sociedade de ciências naturais de Brünn. Todavia, a repercussão de seus estudos no meio científico do século 19 foi nula. Talvez por Mendel ter baseado suas conclusões em estatísticas, numa época em que a matemática ainda não era empregada em biologia. Eleito abade do mosteiro em 1868, Mendel, sem estímulo para continuar suas pesquisas e sobrecarregado com as funções administrativas, abandonou a atividade científica. Morreu no convento de Brünn em 6 de janeiro de 1884.

O fato é que a obra de Mendel permaneceu ignorada até o começo do século 20, quando alguns botânicos chegaram a resultados semelhantes e encontraram as publicações da Sociedade de Brünn. Seu trabalho pode ser considerado uma obra-prima da experimentação e da lógica, marcando etapa decisiva no estudo da hereditariedade. Mendel foi capaz de interpretar corretamente os resultados de experimentos magistralmente conduzidos. E mais ainda, não se pode esquecer: sua hipótese foi formulada na era pré-citológica. Ele essencialmente demonstrou que as características eram controladas por propriedades ou fatores que hoje chamamos genes. Esses genes interagem para formar o fenótipo (aspecto visível) e segregam inalterados de uma geração para a outra. Nas suas ervilhas duas formas de genes (alelos) podem interagir na formação do fenótipo, podendo um dominar o outro. E além disso, que um alelo recessivo, embora oculto, passa incólume de uma geração para outra, e reaparece em proporções previsíveis.

A segunda metade do século 19 foi o período clássico da citologia. O estudo da célula e sua estrutura acabaram por transpor as descobertas de Mendel para cada célula viva. Haeckel, por exemplo, concluiu que o núcleo da célula era responsável pela hereditariedade. Muitos tentaram, chegaram a resultados similares, porém coube a W. S. Sutton (estudante de E. B. Wilson que escreveu o famoso The Cell, de1896) identificar, em 1902, o comportamento dos cromossomos e seu papel na hereditariedade.

A base teórica do melhoramento genético de plantas e de animas em boa parte do século 20 foi o Mendelismo e sua fusão com a genética quantitativa. É claro que muitas coisas vieram depois: a exploração da heterose (base dos híbridos de milho) e a macho-esterilidade que permitiu a identificação de fatores genéticos não nucleares, por exemplo.

Tome-se como exemplo a cultura de trigo. A genética Mendeliana ajudou não só na exploração da variabilidade natural, mas também a acelerar o processo de geração e manipulação de novas combinações de variabilidade. Como exemplos marcantes destacam-se a criação de cultivares de porte mais baixo (semi-anão), que revolucionam o cultivo de trigo no mundo. Mas não só isso, também: cruzamento e seleção para solucionar problemas de estresses bióticos e abióticos, além de busca de melhoria de aspectos de qualidade industrial de grãos. Paralelamente, a questão da adaptabilidade ampla, via insensibilidade fotoperiódica e à vernalização em trigo. Nos primeiros dias da redescoberta da genética Mendeliana, começo do século 20, destacam-se os trabalhos voltados à solução do problema das ferrugens nesse cereal (folha, colmo e estriada). Depois, entre ao anos 1930 e 1960, veio a ampliação da base de conhecimentos (citogenética, por exemplo), o uso do gene de nanismo e o conceito de “Shuttle breeding”, praticado por Norman Borlaug e seu grupo no México. Pós anos 1960, a melhoria das práticas de manejo para explorar o potencial genético de rendimento do trigo. E chegando-se até os nossos dias, numa fase de transição entre o melhoramento genético Mendeliano típico e o molecular.

Mais além de Mendel na agricultura sobreveio a biotecnologia que, simplificando ao extremo, passou a envolver a manipulação tanto de células quanto de DNA. A ciência é formada pela acumulação de conhecimentos, por isso é sempre difícil precisar o início das coisas. De qualquer forma, um referencial histórico para a biotecnologia foi o trabalho de James Watson e Francis Crick sobre a estrutura do DNA, de 1953. Resolvida a estrutura do DNA seguiu-se na corrida da busca do mapeamento genético, a descoberta de enzimas de restrição, a identificação de seqüências de genes e aí por diante.

Da cultura de células e tecidos ao uso da tecnologia do DNA recombinante, entre especulações e fatos, destacam-se algumas tecnologias de pleno uso na agricultura mundial: resgate de embriões, plantas livre de vírus, fusão de protoplastos, produção de haplóides e os organismos geneticamente modificados (OGMs), obtidos via inserção, eliminação ou duplicação de genes. Da primeira geração de OGMs, citam-se como os de maior difusão: soja RR (Roundup-Ready), resistente ao herbicida glifosate, e milho e algodão Bt, contendo o gene inseticida Bt.

A partir desse ponto, a História ainda está por ser escrita. Embora, com toda certeza, já se encontre muito na frente do que vem para debate público. Do mapeamento de genomas à identificação da função de cada gene e das proteínas envolvidas no seu funcionamento, a agricultura mundial já vive os primeiros ventos dos novos tempos.

(Gilberto R. Cunha (45) é pesquisador da Embrapa Trigo, de Passo Fundo/RS, e membro da Academia Passo-Fundense de Letras.)

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