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O desafio da construção da “nova triticultura brasileira”



Gilberto R. Cunha

Apesar de todo o progresso alcançado na agricultura, aumentando a produção de alimentos e elevando o rendimento dos cultivos em magnitude sem precedentes na história da humanidade, ainda são muitos os desafios a serem vencidos para tornar os alimentos acessíveis para todos e de maneira sustentável. Especialmente, quando se analisa o uso dos recursos naturais e a demanda de alimentos frente às projeções de aumento de população, que torna mais que evidente o tamanho do trabalho que está posto para a agricultura mundial: "suprir uma alimentação adequada (quantidade e qualidade) para nove bilhões de criaturas humanas". Este é o número de pessoas que devem clamar por comida e melhores condições de vida no planeta Terra, ainda antes da metade deste recém iniciado século 21.

Trigo (o cereal da civilização) faz parte do grupo de culturas que, com aumento de população e melhoria de condições de vida, deve ser consumido em maior escala. A questão que se impõe é como poderemos produzir além das atuais 600 milhões de toneladas por ano? Por um lado, é pouco provável a possibilidade de se contar com aumento na área cultivada (desde meados do século 20 não se constatam mudanças significativas), especialmente nos principais países produtores. Além de que, muitas áreas não cultivadas hoje são consideradas marginais para exploração agrícola, com numerosos estresses bióticos e abióticos. Por outro, a necessidade cada vez maior do uso urbano das terras, pressões para preservação do ambiente natural e limitações no uso da água restringem ainda mais essa possibilidade. Uma estratégia factível para se atingir a demanda de trigo projetada para um prazo não tão longo assim (até o ano 2025), parece ser a elevação do rendimento das lavouras de trigo no mundo. Como conseguiremos isso? Eis a tarefa para a comunidade científica que atua nas ciências agrárias.

O rendimento médio de trigo no mundo, neste começo de século 21, é  da ordem de 2,8 toneladas por hectare. Mantidos a área cultivada e o padrão de consumo atuais, até o ano 2025, esse rendimento deveria se elevar para 4,4 toneladas por hectare. Isso significa um incremento no rendimento médio de 80 kg por hectare anualmente. Isso é pouco ou é muito, deve se questionar alguém não familiarizado com estatísticas agrícolas e os avanços históricos nos rendimentos dos cultivos? Basta a comparação com o período da agricultura mundial chamado de "Revolução Verde" (pós anos 1960), quando houve os grandes saltos nos rendimento de trigo, com  ganhos de 41 kg por hectare anualmente, considerando-se a série histórica 1960-2005, para se entender a complexidade da questão. E mais, se considerarmos apenas os últimos 10 anos desta série, os ganhos anuais de rendimento foram de 23 kg por hectare. Mantidas essas taxas de ganhos  de rendimento em trigo, não conseguiremos suprir adequadamente a demanda por esse cereal no mundo, sem mudanças significativas na área sob cultivo. Isso posto, fica evidente que o desafio do aumentar o rendimento de trigo não será algo fácil, quer seja considerado desde o ponto de vista do melhoramento genético e/ou de manejo de cultivos.

Cabe ainda indagar se essa tendência observada em termos de rendimento de trigo no mundo é válida para todos os países com tradição em produção de trigo. Especialmente, no caso do Brasil, como estamos diante dos Estados Unidos, do Canadá,  da Austrália, da Argentina, da França e do Reino Unido, por exemplo, que se encontram no grupo do principais países produtores de trigo?  Nessa comparação, tomando-se por base a série 1960-2005, o Brasil alcançou ganhos de rendimento anuais em trigo da ordem de 30 kg por hectare. Estes não diferem do que obteve a Argentina (também 30 kg/ha/ano). E superam os resultados obtidos nos Estados Unidos (26 kg/ha/ano), no Canadá (22 kg/ha/ano) e na Austrália (17 kg/ha/ano).   Os países da União Européia formam um caso a parte, apresentando ganhos, neste período, de 90 kg/ha/ano (França e Reino Unido, principalmente). Nos últimos 10 anos, foi impossível manter esses níveis de ganhos de rendimento, e esses países apresentaram taxas negativas, com diminuição de rendimento das lavouras de trigo, embora ainda obtenham rendimentos que superam os 6.000 kg/ha (médias nacionais).

Particularmente após 1995, o Brasil superou todos os principais produtores de trigo no mundo, em termos de ganhos anuais de rendimento. Isso reforça o argumento de que entraves para a expansão do cultivo de trigo no Brasil (embora existam) não são de base tecnológica. Temos ambiente natural adequado, estrutura de produção disponível, tecnologia própria, produtores experientes e mercado para trigo. No entanto, não produzimos nem a metade do nosso consumo anual, que já ultrapassa as 10 milhões de toneladas. Cabe então a indagação: Por quê?

Explicações (aparentemente) não faltam para justificar a posição do Brasil como o maior importador mundial de trigo. Muitas são as mesmas há anos. Outras surgem a cada novo tempo (nesse grupo, a entrada de farinha argentina com incentivos do país vizinho, via imposto de exportação). Em comum, a busca de "culpados", quase sempre, fora dos atores que desempenham os papéis principais nos diferentes segmentos que compõem a cadeia de produção de trigo no Brasil. Ou, quando não, configurando-se em mera "transferência" de responsabilidades que, não raro, culminam em pedidos de proteção ao Estado.

Há que se entender melhor a cadeia do trigo no Brasil, para o embasamento de iniciativas que efetivamente possam implicarem em mudanças de perspectiva. Começando com a concentração da produção e do consumo. Trigo no Brasil é produzido, principalmente, em dois estados da federação: Paraná e Rio Grande do Sul (92% da produção nacional). Embora também se cultive trigo em Santa Catarina, em São Paulo, no Mato Grosso do Sul, em Minas Gerais, em Goiás e no Distrito Federal (e em menor escala ainda, em Mato Grosso e no sul da Bahia). E, por densidade populacional e padrão de consumo, a produção de farinha é  distribuída da seguinte forma (aproximada): no Sudeste (42%), no Sul (31%), no Nordeste (22%), no Centro-Oeste (3%) e no Norte (2%).

A análise do exposto demonstra que há necessidade de deslocamento interno do trigo brasileiro das zonas de produção (maioria no Sul) para os centros de consumo (Sudeste e Nordeste). Aí já começa um dos entraves não tecnológicos, envolvendo logística inadequada e falta de uma melhor estrutura de transporte, particularmente marítima (com privilegio da cabotagem para navios de bandeira brasileira e taxas de renovação de frota), que encarecem  o trigo nacional. E isso é algo evidente no caso do trigo gaúcho, admitindo-se uma capacidade instalada de moagem e mais a necessidade de reserva de sementes no RS da ordem de um milhão de toneladas. E que, pelas mais diversas razões (qualidade tecnológica para mesclas, vantagens financeiras, prazos de pagamento, etc.) os moinhos do estado importam anualmente ao redor de 400 mil toneladas de trigo, torna-se elementar concluir que tudo o que produzirmos acima de 600 mil toneladas deverá ser colocado no mercado fora das nossas fronteiras. O estado do Paraná, pela proximidade com o Sudeste e ICMS diferenciado para trigo, leva vantagem nesse particular. Por isso é que os segmentos da produção costumam apelar para a manutenção e ampliação de mecanismos de apoio à comercialização (PEP, por exemplo) e equiparação de tributos entre os estados nas operações que envolvem trigo (coisa que não é praticada hoje).

Também a segmentação do mercado brasileiro de trigo e o destino das farinhas merece consideração. Em números aproximados, trigo no Brasil é usado nas seguintes proporções para panificação (55%), uso doméstico (17%), produção de massas alimentícias (15%), fabricação de biscoitos (11%) e outros (2%). Esses número servem de indicativos para a organização da produção interna, com base na genética das cultivares (classe comercial), nas características do ambiente, nas práticas de manejo da cultura e no processamento pós-colheita. Sem levar isso em conta, não conseguiremos criar uma identidade para o trigo brasileiro com orientação para o mercado (tanto interno como internacional). Por exemplo, atentar para a exigência da indústria de ter um produto livre de insetos (e outros resíduos estranhos) e com classe comercial definida (não praticar misturas de trigo diferentes).

A moagem efetiva de trigo no Brasil anda na ordem das 10,5 milhões de toneladas (existindo capacidade instalada ociosa). Isso, frente a perspectiva de uma safra brasileira de trigo em 2007, que deve girar ao redor das quatro milhões de tonelada, define o tamanho da necessidade das nossas importações. E, especialmente este ano, diante de um cenário de estoques mundiais baixos e preços aquecidos, não se pode considerar que produzir trigo no Brasil seja um mau negócio. Não é mau negócio para o produtor (pelas mais diversas razões; desde redução de custos fixos da propriedade, agregação de renda no inverno, não exigir ativos específicos, etc.) e nem para quem atua no comércio de trigo (cooperativas, cerealistas, etc.), pois, levando-se em conta o preço mínimo praticado para o produtor e o que efetivamente paga a indústria, poucos negócios proporcionam margem de ganho igual ao trigo (considerações de escala à parte).

Importar trigo não é proibido e nem pecado. Como também não o é vender trigo para o mundo (exportar). Os desafios para a construção de uma "nova triticultura" brasileira vai exigir a superação de obstáculos que vão além das questões meramente tecnológicas. Começando pela luta para "derrotar" cenários pessimistas, tanto de instituições internacionais quanto de órgãos oficiais nossos, que sinalizam, para os próximos 10 anos, que o Brasil, junto com o Egito, a Algéria e o Japão serão os maiores países importadores de trigo. O Brasil, por possuir capacidade de expansão de área cultivada (sem necessidade de ampliação da atual fronteira agrícola) e domínio de tecnologia competitiva, mesmo parecendo sonho, pode, num prazo mais curto do que muitos imaginam, se tornar um dos grandes produtores mundiais de trigo. A Embrapa está empenhada para que essas projeções "pessimistas" relacionadas com a produção de trigo no Brasil se configurem como falsas. E que assim seja!

 

(Gilberto R. Cunha é Chefe-Geral da Embrapa Trigo e João Leonardo F. Pires é Chefe Adjunto de P&D da Embrapa Trigo.)

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