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A Teoria da Fome


Gilberto R. Cunha

Engana-se quem imagina que lidar com fome, desnutrição e segurança alimentar seja algo simples. Não é, pelo contrário. Há muito mais coisas por trás dessas palavras do que supõe a nossa vã filosofia. Começando por definições e questões teóricas de base e chegando até o extremo das dificuldades operacionais para a implementação de propostas práticas.

Fome, por exemplo, tem muitas definições. Nenhuma tão cruel e objetiva quanto a realidade de quem passa fome, mas, certamente, todas úteis nas discussões que buscam resolver um dos mais importantes problemas do mundo contemporâneo. Talvez a mais completa seja aquela que considera fome como um processo pelo qual há um acentuado declínio nutricional de uma população, levando a um aumento de mortalidade, morbidez e, cada vez mais, expondo um maior número de indivíduos a esse risco. Nela, claramente, percebe-se que a ótica individual é deixada de lado. Predomina a visão de população e é muito mais centrada na origem, em causas com raízes estruturais do que propriamente em eventualidades. Também não podem ser descartadas as eventualidades (secas, enchentes, guerras, crises econômicas etc.), que comprometem a produção de alimentos e o nível de renda das pessoas, espalhando mortes e migrantes.

Os dois aspectos teóricos da fome (processo e eventualidade) mais que conflitantes são, no fundo, complementares. A visão de processo é fundamental, pois permite a identificação antecipada e uma intervenção preventiva, quando for o caso. Também o aspecto de eventualidade não pode ser desprezado, pois é útil na definição do caráter de emergência dos acontecimentos e possibilita distinguir fome de desnutrição crônica, embora quase sempre estejam associadas. De qualquer forma, é importante se ter claro que fome pode ocorrer sem nenhuma eventualidade extrema aparente e vice-versa. E ainda mais, como é comum acontecer, a fome afeta algumas regiões do globo, embora não atinja todas as camadas da sociedade local.

É mais fácil a aceitação de fome como um fenômeno decorrente de eventos episódicos, quase sempre naturais, do que propriamente como tendo origem em causas estruturais. Mas, de fato, fome é sinônimo de pobreza. E lidar com pobreza é muito mais complicado, pois envolve também aspectos de dominação política e econômica.

Segurança alimentar é um outro conceito muito citado, pelo menos nos últimos tempos, e pouco entendido; pelo que parece. Tome-se como referência a definição do Banco Mundial: “... é o acesso por todas as pessoas, durante todo o tempo, aos alimentos suficientes para terem uma vida ativa e saudável”. Por analogia, insegurança alimentar, de fato o problema, é o contrário disso: “a falta de acesso aos alimentos”. Mais que em nível de uma nação, o conceito pode ser expandido (ou reduzido se preferirem) para o domicílio familiar.

Indo às raízes do problema fome no Brasil, não há como deixar de lado alguns pontos. Primeiro: não é verdade que há fome no país porque faltam alimentos. Já foi assim, mas hoje a agricultura brasileira tem capacidade para produzir alimentos para o consumo interno e para a exportação de excedentes. Segundo: o problema estaria no setor de distribuição e comercialização, que não consegue atender adequadamente em níveis satisfatórios à demanda interna. Também não é mais verdade, essa etapa tipicamente anos 1960 já passou. Terceiro e por último: não faltam alimentos, mas sim dinheiro para que a população de baixa (ou mesmo sem) renda consiga adquiri-los. Essa parece ser a mais provável causa da fome no Brasil. Embora não se deva desconhecer que é essencial aumentar a produção interna, visando aumentar o consumo da população e os postos de trabalho. Em resumo: existe fome não porque faltam alimentos, mas porque falta dinheiro para a compra.

A fome brasileira concentra-se tanto no meio rural como no urbano, embora não sejam idênticas. Também é inegável, mesmo que esse flagelo esteja espalhado pelo país, que há diferenças marcantes entre regiões: a fome nordestina já é secular. A fome é a face mais visível da insegurança alimentar. Mas não só ela: a desnutrição tem sido a sua parceira inseparável. E junto todas as mazelas da pobreza: mortalidade infantil, problemas de saúde pública e baixos índices de produtividade dos trabalhadores. Há muito mais por trás do conceito de segurança alimentar que simplesmente disponibilidade de alimentos ou acesso aos alimentos. Tem que ser considerada também a disponibilidade dos serviços de saúde e acesso à educação, por exemplo. O custo-benefício pode ser maior do que acudir simplesmente os efeitos da fome.

Por falar em fome e mortes, você saberia dizer quanto vale uma vida humana? A resposta, na língua dos avaliadores, geralmente começa assim: It depends... Ou seja: depende. E depende do quê? Depende de que estejamos falando em um cidadão do primeiro ou do terceiro mundo. Independentemente de qualquer julgamento moral nesse fato, todos nós, por uma ótica econômica, temos um valor de mercado. Em nome da eficiência econômica, como parte de análises de custo-benefício do aquecimento global (popular efeito estufa), nos anos 1990, por exemplo, os economistas não tiveram como escapar de tal valoração. Por alguns critérios, a estimativa foi de que, no mundo industrializado, uma vida humana valia ao redor de US$ 1,5 milhões. Eu e você leitor ficamos, nesse estudo, na faixa entre US$ 150 mil e 300 mil. Que tal? Você imaginava que valia mais ou menos, para os olhos do mercado?

Não se preocupe em responder o questionamento acima. E por favor, não me deixe repugnado, por se julgar surpreso em valer tanto só porque conhece pessoas que vendem filhos, se vendem ou escravizam semelhantes por muito menos que isso. A base de cálculo foi o quanto se estaria disposto (ou se poderia) pagar para evitar riscos. E os cidadãos dos países ricos têm condições de pagar, por baixo, entre 10 e 15 vez aquilo que é possível de ser pago por um indivíduo de uma nação pobre. Em outras palavras: o seu direito a vida depende da sua renda. Mas, também não ignore que os debates sobre esse cálculos e números foram e têm sido intensos. A aceitação não tem sido pacífica. Há quem rejeite esses números e sua maluca análise, fique tranqüilo e não perca o sono por isso. Todavia, por mais triste que isso possa parecer é assim também na questão da fome, onde renda é sinônimo de acesso aos alimentos.

Para a erradicação da fome tem que se lidar com causa de bases, entrando, muitas vezes, em controvérsias políticas e econômicas. O que está em jogo é subdesenvolvimento e pobreza. O foco pode ser na fome, até por ter um maior apelo emocional e de mídia, mas o que realmente importa é a questão da segurança alimentar. Não é por nada que o PROJETO FOME ZERO do Governo Federal trata-se, na verdade, de uma ambiciosa proposta de política de segurança alimentar para o Brasil. O objetivo é garantir que todos os brasileiros tenham, em todo momento, acesso aos alimentos básicos de que necessitam. Para essa garantia, mesmo sendo um direito inalienável da pessoas humana, muitas transformações serão necessárias, no tocante ao desenvolvimento econômico. Começando com: geração de empregos e de renda, recuperação dos salários e expansão da produção agrícola. Também há necessidade de novas políticas de incentivo à produção, à comercialização e muitas ações emergenciais de combate a fome. Por isso é que erradicar a fome no Brasil e assegurar o direito a uma alimentação de qualidade para todos não pode ser apenas mais uma proposta de governo. Para ser efetiva vai ter de contar com o envolvimento de toda a sociedade numa ampla mobilização.

(Gilberto R. Cunha (45) é pesquisador da Embrapa Trigo, de Passo Fundo/RS, e membro da Academia Passo-Fundense de Letras.)

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