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A espiga presa e o problema da hipótese não comprovada


Marcelo Hilário Figueira Garcia
Insensivelmente começamos a alterar os fatos para provar as teorias ao invés de alterar as teorias para provar os fatos.
(Sherlock Holmes)

 

Há cerca de quatro anos, o fenômeno ou anomalia da “espiga presa” chegou ao nosso país causando grandes prejuízos aos produtores. Após várias discussões a respeito e até mesmo alguns testes realizados em campo, como os mencionados no link da reportagem abaixo, os responsáveis pela condução dos trabalhos passaram a afirmar que a anomalia PODE SER causada pela aplicação de adjuvantes que contém surfactantes não iônicos e alguns fungicidas, desde o estádio V8 até o florescimento. A hipótese defendida é a de que os surfactantes não iônicos SUPOSTAMENTE se decompõem dentro da planta levando à formação de etileno, o que causaria o referido problema. No caso dos fungicidas, eles atuam inibindo a formação da ACC sintase, um dos precursores da síntese de etileno nas plantas.

Assista o vídeo.

https://www.youtube.com/watch?v=Uvn-bKp9aUU

De acordo com o Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, seguem abaixo algumas definições para a palavra SUPOSIÇÃO:

  • Ato ou efeito de supor; teoria ou ideia que não se pode comprovar; conjectura, suposição;
  • Proposição considerada verdadeira para lhe tirar alguma indução ou conclusão;
  • Opinião que não se funda em provas certas e positivas, mas em meras hipóteses.

Vamos aos fatos. Vem comigo.

Em 2007, nos Estados Unidos, o problema da espiga presa foi detectado, levando a diversos especialistas e instituições de renome iniciarem pesquisas e estudos visando identificar as causas e propor soluções para a anomalia.

Após alguns estudos e testes de campo, os pesquisadores concluíram que alguns fungicidas inibidores da ACC sintase, um dos precursores da síntese de etileno nas plantas, e surfactantes não iônicos, mais especificamente os do tipo alquil fenol etoxilados (AFE), quando usados juntos, podem contribuir para a formação da anomalia da espiga presa. Alguns destes pesquisadores também verificaram que essa possibilidade ocorria quando os alquil fenol etoxilados foram aplicados sozinhos.

Aqui fica uma pergunta para reflexão, sobre os testes realizados: o que causa a anomalia da espiga presa é a falta de etileno, ou a presença/excesso dele? Porque os autores postulam que os fungicidas suprimem sua produção, e os surfactantes não iônicos, de acordo com a teoria/hipótese proposta, liberam etileno devido à sua degradação no interior das espigas. Se uma ajuda e o outro atrapalha, então quando aplicados juntos um anularia o outro? No mínimo, controverso.

Continuando...

Surfactantes não iônicos são moléculas que, quando adicionadas em água, não se dissociam, isto é, não apresentam carga, nem positiva, nem negativa. Desde os anos 2000, esta classe representa mais de 25% do total de surfactantes produzidos em todo o mundo. São utilizados em produtos de uso doméstico a industrial, passando por cosméticos, tintas, agroquímicos, etc.

Existem diversos tipos de surfactantes não iônicos, porém a principal classe é a dos tensoativos etoxilados, que tem o grupo que se associa à água formado por uma cadeia de óxido de etileno introduzida em uma cadeia apolar. Dentro desta classe, os principais representantes são os álcoois graxos etoxilados (AGE) e os alquil fenóis etoxilados (AFE), correspondentes a 40% e 20% do mercado respectivamente.

 Mas como o óxido de etileno é introduzido na molécula apolar para produzir o surfactante não iônico?

Em primeiro lugar, o etileno, gás obtido na indústria de petróleo e gás natural, é reagido com oxigênio na presença de um catalisador de prata, a 250-300°C e 10-20 atm de pressão.  Então, o óxido de etileno formado reage com o álcool graxo ou o alquil fenol, em meio alcalino, em temperaturas superiores a 180°C, para formar o surfactante não iônico. Essa ligação formada, da introdução do óxido do etileno na cadeia apolar, é extremamente estável e precisa de muita energia para ser rompida (algo ao redor de 150°C), o que ainda assim a degradaria em óxido de etileno, e não em etileno propriamente dito.

Você que leu até aqui, acha que uma molécula - óxido de etileno - que precisou de um catalisador metálico, mais de 250°C e mais de 10 atm de pressão para ser formada, vai ser degradada dentro de uma espiga de milho? Se elas possuem tamanha energia acumulada, há de se convir que teríamos verdadeiras fazendas de pipoca estourando Brasil afora, não é mesmo?

É de química ou de mágica que estamos falando?

Onde então de fato podemos chegar com os fatos expostos e os estudos realizados:

  • Até os dias atuais, nenhum teste ou estudo realizado foi capaz de comprovar o “suposto” mecanismo de degradação do surfactante não iônico etoxilado à etileno.
  • Surfactantes não iônicos são uma classe de produtos químicos que é composta de vários grupos de tensoativos, entre eles os etoxilados. Estes, por sua vez, possuem vários grupos - álcoois graxos etoxilados, alquil fenóis etoxilados, aminas graxas etoxiladas, ésteres de ácidos graxos etoxilados – cuja similaridade é dada exatamente pela cadeia de óxido de etileno introduzida na molécula orgânica de origem.
  • Os artigos e monografias publicados até a presente data não comprovam cientificamente as hipóteses que são propostas. Portanto, afirmar que alguns tipos de fungicidas e que surfactantes não iônicos causam a anomalia da espiga presa no milho é se utilizar de uma definição de SUPOSIÇÃO oriunda do dicionário que guardei para este momento: “EXIBIÇÃO DE UMA COISA FALSA, APRESENTADA COMO VERDADEIRA”.

Referências:

- Below, F. E., Duncan, K. A., Uribelarrea, M., & Ruyle, T. B. (2009). Occurrence and proposed cause of hollow husk in maize. Agronomy Journal, 101(1), 237–242

- Daltin, D. Tensoativos: química, propriedades e aplicações. São Paulo: Blucher, 2011.

- Moderno Dicionário da Língua Portuguesa Michaelis. Ed. Melhoramentos. https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/

- Nielsen, R. L. (2007). Symptomology of arrested ear development in corn. Corny News Network, Purdue University. https://www.agry.purdue.edu/ext/corn/news/articles.07/ArrestedEars-0904.html

- Nielsen, R. L. (2007). Ear size determination in corn. Corny News Network, Purdue University.                                                                    https://www.agry.purdue.edu/ext/corn/news/timeless/EarSize.pdf

- Nielsen, R. L. (2008). Arrested ears resulting from pre-tassel applications of pesticide and spray additive combinations. Corny News Network, Purdue University. https://www.agry.purdue.edu/ext/corn/news/articles.08/ArrestedEars-1209.html

Ortez, O. A., McMechan, A. J., Hoegemeyer, T., Ciampitti, I. A., Nielsen, R., Thomison, P. R., & Elmore, R. W. (2022). Abnormal ear development in corn: A review. Agronomy Journal, 114, 1168–1183.

- Schmitz, G. L., Fassler, N. T., Fellows,G.M., Shirley, A. M.,Chamblee, R.W., Finch, C.W., Storr, M. A., Vassalotti, P.M., Klingaman, T. D., Thomas,W. E., & Rathmann, D. P. (2011). Arrested ear development in corn caused by a component of certain surfactants. Agronomy Journal, 103(6), 1697–1703.

 

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