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Sobre a propriedade intelectual e produção de cultivares


Reginaldo Minaré

             O Acordo Relativo aos Aspectos do Direito da Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio – ADPIC, mais conhecido por Tratado de Direitos de Propriedade Intelectual -TRIPs (sigla em inglês para Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), é um tratado internacional, integrante dos anexos do acordo assinado em 1994 que transformou o Acordo Geral de Tarifas e Comércio – GATT na Organização Mundial do Comércio – OMC.

A Ata Final que Incorpora aos Resultados da Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais do GATT foi assinada em Maraqueche, em 12 de abril de 1994. O Instrumento de Ratificação da referida Ata Final pela República Federativa do Brasil foi depositado em Genebra, junto ao Diretor do GATT, em 21 de dezembro de 1994. A referida Ata Final entrou em vigor para a República Federativa do Brasil em 1º de janeiro de 1995.

Aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 30, de 15 de dezembro de 1994, a Ata Final foi promulgada pelo Presidente da República, Decreto nº 1.355, de 30 de dezembro de 94, e sua execução passou a ser exigida inteiramente, inclusive no que diz respeito ao cumprimento do ADPIC-TRIPs.

O Acordo, complexo e diretamente vinculado à vida econômica e comercial, tem como objetivo regular e proteger diferentes bens imateriais no mundo, elevando o nível de proteção em todos os Estados membros e a garantia da observação dos direitos de propriedade intelectual, como: patentes, direitos de autor, marcas, desenhos industriais, indicações geográficas, topografias de circuitos integrados e proteção do segredo de negócio.

Cumprindo parte do compromisso assumido na esfera internacional, foi elaborada e publicada a Lei 9.279, de 14 de maio de 1996, que regula direitos e obrigações relativas à propriedade industrial. Contudo, a Lei 9.279, no que diz respeito às plantas, não esgotou o tema, visto que vetou, no artigo 18, inciso III, o patenteamento do todo ou parte dos seres vivos, exceto os microorganismos transgênicos.

Assim, considerando o disposto no artigo 27, 3, (b) do TRIPs, que estabelece que os Membros devem conceder proteção a variedades vegetais, seja por meio de patentes, seja por meio de um sistema sui generis eficaz, ou por uma combinação de ambos, restava claro que, com relação às plantas, a legislação brasileira necessitava de complemento.

Com o objetivo de complementar a legislação para atender o compromisso firmado, foi elaborada a Lei nº 9.456, de 25 de abril de 1997, conhecida como Lei de Proteção de Cultivares. O Brasil optou, portanto, pelo estabelecimento de um sistema sui generis e a estrutura normativa contida na referida lei segue o modelo do Convenio Internacional para Proteção das Obtenções Vegetais da União Internacional para Proteção de Obtenções Vegetais – UPOV (sigla em inglês para Union for the Protection of New Varieties of Plants), nos termos da versão de 1978.

SOBRE A UPOV

Nos anos 50, com o objetivo de regulamentar os direitos dos melhorista de plantas, diversos países europeus iniciaram movimento para elaboração de regras para proteção de novas variedades vegetais. Capitaneado principalmente pela Alemanha, Países Baixos, Reino Unido e França o movimento resultou, com a Conferência Diplomática de Paris em 2 de dezembro de 1961, na criação da União Internacional para Proteção de Obtenções Vegetais e adoção do Convenio Internacional para Proteção das Obtenções Vegetais.

Instituição intergovernamental com sede em Genebra (Suíça), a UPOV tem como objetivo proporcionar e fomentar um sistema eficaz para a proteção das variedades vegetais e conceder e garantir direitos dos obtentores. Como foi acima mencionado a convenção original foi adotada em Paris em 1961 e posteriormente sofreu três revisões: em 1972, em 1978 e a última em 1991. A UPOV, contudo, determina regras gerais e essenciais para a legislação de proteção necessária aos países membros. Cada Estado, portanto, é livre para detalhar a implementação no âmbito nacional, o que permite e explica certas diferenças nas legislações domésticas. Atualmente, a parte contratante que não está obrigada pela Ata de 1961/1972 ou pela Ata de 1978, deverá adotar a versão de 1991.

Com a adesão à UPOV/78, o Brasil passou a ter a garantia de que os direitos dos obtentores de cultivares serão respeitados pelos Estados que tenham também aderido a UPOV. Em outras palavras, as cultivares desenvolvidas no Brasil não podem ser exploradas comercialmente nos países filiados à UPOV sem o pagamento de direitos aos melhoristas brasileiros. Como se trata de uma via de mão dupla, da mesma forma são protegidos os direitos dos obtentores dos países membros. Sem a adesão do Brasil à UPOV, os acordos de reciprocidade teriam que ser negociados Estado por Estado. Na página da UPOV na internet pode-se verificar que atualmente o Convenio conta com 67 membros.

PROTEÇÃO DE CULTIVARES NO BRASIL

De acordo com a Lei 9.456, cultivar é "a variedade de qualquer gênero ou espécie vegetal superior que seja claramente distinguível de outras cultivares conhecidas por margem mínima de descritores, por sua denominação própria, que seja homogênea e estável quanto aos descritores através de gerações sucessivas e seja de espécie passível de uso pelo complexo agroflorestal, descrita em publicação especializada disponível e acessível ao público, bem como a linhagem componente de híbridos".

A proteção dos direitos relativos à propriedade intelectual referente a cultivar se efetua mediante a concessão de Certificado de Proteção de Cultivar, considerado bem móvel para todos os efeitos legais e única forma de proteção de cultivares e de direito que poderá obstar a livre utilização de plantas ou de suas partes de reprodução ou de multiplicação vegetativa, no País.

À pessoa física ou jurídica que obtiver nova cultivar ou cultivar essencialmente derivada no País será assegurada a proteção que lhe garanta o direito de propriedade nas condições estabelecidas na Lei. A proteção poderá ser requerida por pessoa física ou jurídica que tiver obtido cultivar, por seus herdeiros ou sucessores ou por eventuais cessionários mediante apresentação de documento hábil.

A proteção recai sobre o material de reprodução ou de multiplicação vegetativa da planta inteira e assegura a seu titular o direito à reprodução comercial no território brasileiro, ficando vedados a terceiros, durante o prazo de proteção, a produção com fins comerciais, o oferecimento à venda ou a comercialização, do material de propagação da cultivar, sem sua autorização.

De acordo com o artigo 10 da Lei de Proteção de Cultivar, não fere o direito de propriedade sobre a cultivar protegida aquele que: reserva e planta sementes para uso próprio, em seu estabelecimento ou em estabelecimento de terceiros cuja posse detenha; usa ou vende como alimento ou matéria-prima o produto obtido do seu plantio, exceto para fins reprodutivos; utiliza a cultivar como fonte de variação no melhoramento genético ou na pesquisa científica; sendo pequeno produtor rural, multiplica sementes, para doação ou troca, exclusivamente para outros pequenos produtores rurais, no âmbito de programas de financiamento ou de apoio a pequenos produtores rurais, conduzidos por órgãos públicos ou organizações não-governamentais, autorizados pelo Poder Público.

De acordo com o artigo 11 da Lei de Proteção de Cultivar, a proteção vigorará, a partir da data da concessão do Certificado Provisório de Proteção, pelo prazo de quinze anos, excetuadas as videiras, as árvores frutíferas, as árvores florestais e as árvores ornamentais, inclusive, em cada caso, o seu porta-enxerto, para as quais a duração será de dezoito anos. Decorrido o prazo de vigência do direito de proteção, a cultivar cairá em domínio público e nenhum outro direito poderá obstar sua livre utilização.

Obtido o Certificado Provisório de Proteção ou o Certificado de Proteção de Cultivar, fica assegurando, ao titular, o direito à exploração comercial da cultivar.

Foi criado, no âmbito do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - MAPA, o Serviço Nacional de Proteção de Cultivares - SNPC, que realiza a gestão do sistema e mantém o Cadastro Nacional de Cultivares Protegidas.

QUESTÕES ATUAIS

Após 12 anos de vigência da Lei de Proteção de Cultivares, a afirmação contida no artigo 10 da Lei 9.246 de que não fere o direito de propriedade sobre a cultivar protegida aquele que reserva e planta sementes para uso próprio, em seu estabelecimento ou em estabelecimento de terceiros cuja posse detenha, vem motivando e fundamentando severas críticas à eficácia da Lei.

Segundo os críticos, a expressão "uso próprio" (Farmer´s privilege), pelo fato de não ter sua abrangência delimitada de forma clara no texto da Lei 9.246, vem sendo utilizada para justificar a reprodução e armazenamento de qualquer volume de sementes para plantio próprio, independentemente da área e do nível tecnológico e econômico do agricultor, o que, segundo os críticos, inviabiliza a garantia dos direitos dos obtentores e compromete diversos programas de pesquisa em melhoramento vegetal.

Especificamente sobre a questão relacionada ao uso próprio, dois projetos de lei tramitam na Câmara dos Deputados: Projeto de Lei nº 2325, de 2007 (Dep. Rose de Freitas) e Projeto de Lei nº 3.100, de 2008 (Dep. Moacir Micheletto), este último além de definir o campo de abrangência da expressão "uso próprio", exclui as plantas ornamentais dessa modalidade de isenção. O Projeto de Lei 3.100 cria a figura do usuário especial, definindo-o como sendo os agricultores familiares e demais beneficiários previstos no artigo 3º da Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006 (que estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais), bem como o assentado da reforma agrária, o indígena e o remanescente de quilombo que obtenham renda bruta anual máxima de valor equivalente ao limite de isenção estabelecido na legislação do Imposto de Renda da Pessoa Física.

Contudo, o tema não é objeto de debate apenas na Câmara dos Deputados. O MAPA também está elaborando um projeto de lei para modificar a Lei de Proteção de Cultivares que poderá ser encaminhado ao Parlamento ainda em 2009.

Trata-se, entretanto, de um tema polêmico que já suscita debates inflamados. No âmbito do Poder Executivo, o MAPA e o Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA têm posições opostas quanto à necessidade de modificação da Lei de Proteção de Cultivares. Na Câmara dos Deputados, Audiência Pública realizada em junho de 2008 serviu para expor as divergências entre o MAPA e o MDA.

Para técnicos do MDA, a manutenção do texto atual da Lei de Cultivares; o fortalecimento das estruturas de fiscalização existentes no país; a aplicação rígida e criteriosa dos instrumentos de penalizações previstos em Lei para os fraudadores e contrabandistas e o incentivo ao uso de sementes certificadas são medidas que solucionariam os problemas levantados. A modificação da Lei para restringir o "uso próprio" pode aumentar o custo de produção, reduzir a renda do agricultor e elevar o preço dos produtos ao consumidor.

Para técnicos do MAPA, não apenas a expressão "uso próprio" pode ser considerada um gargalo para o setor de sementes e mudas. O número limitado de espécies abrangidas (art.4); o direito do melhorista é restrito ao material propagativo (art.9); o uso próprio de sementes e mudas (art.10); a duração da proteção (art.11); a complexidade dos procedimentos administrativos (art.18, 19 e 20); a licença compulsória é decidida pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE (art.31) e a obrigatoriedade da elaboração e publicação de descritores também são pontos da Lei que poderiam ser modificados.

Além do que até aqui foi argumentado, cabe ressaltar que com a introdução das plantas geneticamente modificadas na estrutura produtiva nacional, o sistema de proteção se tornou um pouco mais complexo. A tecnologia oriunda da engenharia genética, que permite modificar uma planta, tem sua proteção amparada na Lei de Propriedade Industrial, e de acordo com o artigo 40 da mencionada lei, a patente de invenção vigorará pelo prazo de 20 (vinte) anos e a de modelo de utilidade pelo prazo 15 (quinze) anos contados da data de depósito. Assim uma cultivar protegida pela Lei de Proteção de Cultivares terá uma proteção de 15 anos e a tecnologia que permitiu a introdução de uma modificação genética nessa cultivar será protegida pelo prazo de vinte anos. Outra diferença está na isenção para o "uso próprio", prevista na Lei de proteção de Cultivares e não na Lei de Propriedade Industrial.

CONCLUSÃO

Uma limitação clara na Lei de Proteção de Cultivares do campo de abrangência da expressão "uso próprio" é pertinente e necessária, esse tipo de dispositivo legal aberto, por estar sujeito a diferentes interpretações, não oferece à garantia jurídica necessária ao fortalecimento do setor sementeiro, fundamental para a agricultura e um dos responsáveis pelo sucesso da Revolução Verde. Entretanto a delimitação do campo de abrangência da expressão "uso próprio", para ser acolhido como legitimo e justo pelas partes, deve ser mantida dentro do limite do razoável levando em conta as características de produção das variadas culturas. Procedimento que também poderia nortear o debate sobre a possível exclusão das ornamentais da isenção estabelecida pelo instituto do uso próprio.

No que diz respeito ao aperfeiçoamento e simplificação dos procedimentos administrativos estabelecidos pela Lei de Proteção de Cultivares, o MAPA, fazendo uso da experiência acumulada em mais de uma década de aplicação da Lei e consultando a comunidade de obtentores, que são os principais usuários, certamente saberá propor mudanças inteligentes para o aperfeiçoamento do processo administrativo.

 
Reginaldo Minaré
Advogado e Diretor Jurídico da ANBio

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