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Os transgênicos e a obscura Orientação nº 2 do CNBS


Reginaldo Minaré

           O termo latino burrus, que designa uma cor escura e triste, está na origem da palavra francesa bure, usada para indicar as mesas cobertas com tecido escuro posto sobre as escrivaninhas dos escritórios das repartições públicas. Posteriormente, uma derivação do vocábulo bure deu origem à palavra bureau, que foi utilizada para designar o escritório em sua totalidade. Entretanto, atribui-se ao economista Seigneur de Gournay - Jean-Claude Marie Vincent (1712-1759) - ministro do governo francês no século XVIII, o uso do termo bureau associado ao radical grego krátos - que significa poder, para designar, de maneira crítica, com a palavra bureaucratie, os escritórios das repartições públicas e o poder neles concentrados, que pode ser exercido de maneira nada translúcida criando um ambiente decisório nebuloso capaz de impedir o florescimento de determinados setores.

Contudo, mesmo com uma origem pouco nobre, a palavra burocracia, amplamente utilizada quando o assunto é administração pública, não apresenta um significado conceitual monolítico. Pode ser utilizada, de forma positiva, para indicar o conjunto de pessoas, regulamentos, secretarias, departamentos e coordenções necessários ao adequado funcionamento do Poder Público, que podem constituir um sistema funcional, eficiente e aprovado pela maioria dos usuários. Já na sua forma negativa, a mesma palavra serve para indicar que o sistema construído é ineficiente, moroso, que privilegia os excessos procedimentais, muitas vezes sobrepostos, redundantes e até desnecessários, e que deixa em demasia margem para a atuação discricionária dos responsáveis pelas decisões, muitas vezes criando o ambiente necessário à implantação da conhecida, indesejada e reprovada regra que se baseia no "criar dificuldades para vender facilidades".

A construção de um sistema burocratizado, de aspecto negativo, tem como base, na maioria das vezes, um sistema normativo inadequado à administração do segmento que busca regular. Seja por desconhecimento técnico ou má-fé mesmo, constroem-se verdadeiros emaranhados normativos que mais servem para dificultar do que para disciplinar de forma adequada o funcionamento do setor. Na sociedade atual, que se caracteriza pela especialização e, ao mesmo tempo, exige conhecimento interdisciplinar, regular determinados segmentos, principalmente aqueles considerados estratégicos, não é tarefa para quem não os conhece profundamente.

Exemplo de construção de sistema burocrático ineficaz no Brasil é a história recente da regulamentação das atividades no campo da engenharia genética. Para evitar a repetição de erros é fundamental conhecer aqueles cometidos no processo de normatização da já revogada Lei 8.974/95 (Lei de Biossegurança) para preservar a reforma introduzida pela Lei 11.105/05, atual Lei de Biossegurança que disciplina as atividades com organismos geneticamente modificados - OGM. O emaranhado normativo construído sob a vigência da Lei 8.974/95 impediu a realização de atividades com OGM de tal forma que foi mais fácil mudar a lei do que desburocratizar o segmento.

Hoje, analisando ações do Conselho Nacional de Biossegurança - CNBS, Colegiado formado por 11 ministros de estado, especialmente o conteúdo da Orientação nº 2 do Conselho, de 31 de julho de 2008, constata-se que o processo de regulamentação da Lei 11.105/05 retomou o caminho que leva à construção de um sistema burocrático baseado na concepção negativa da expressão.

O CNBS aprovou orientação no sentido de que sejam realizados estudos de seguimento de médio e longo prazos dos eventuais efeitos no meio ambiente e na saúde humana dos OGM e seus derivados, cuja liberação comercial tenha sido autorizada, cabendo ao Ministério da Ciência e Tecnologia convocar um grupo de trabalho, para tratar desse tema, que será composto por representantes dos Ministérios da Ciência e Tecnologia, da Saúde, do Meio Ambiente e da Agricultura.

Diante da ação do CNBS, ficam as seguintes dúvidas: esse grupo de trabalho estabelecerá critérios para a realização dos estudos de médio e longo prazos? Fará o monitoramento com base nos critérios estabelecidos pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio? Estabelecerá os critérios e fará os estudos?

Caso tenha o CNBS criado esse grupo para estabelecer critérios para a realização dos estudos de médio e longo prazos, propôs uma ilegalidade, visto que a Lei 11.105/05 é clara ao estabelecer, artigo 14, inciso III, que compete à CTNBio estabelecer, no âmbito de suas competências, critérios de avaliação e monitoramento de risco de OGM e seus derivados. Caso o CNBS pensou criar um grupo para realizar os estudos de médio e longo prazos, adentrou-se à esfera do perdulário, direcionando recursos da administração pública para a realização de estudos que devem ser realizados pelos titulares das biotecnologias aprovadas, seguindo os critérios estabelecidos pela CTNBio que também avaliará os resultados desses estudos. Por sua vez, caso o CNBS tenha proposto a criação de um grupo que estabelecerá critérios e fará os estudos propostos, errou duas vezes.

De fato, a Orientação nº 2 do CNBS é um sinal de alerta para os usuários do sistema nacional de biossegurança, visto ter potencial bem maior para escurecer do que para iluminar o já opacíssimo caminho que leva à liberação comercial dos OGM.

 

Reginaldo Minaré
Advogado e Diretor Jurídico da ANBio

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