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Estudo de caso: Vanusa


ANDRE MARQUES VALIO
A expansão da cana-de-açúcar nos anos 2000 rendeu muitas estórias a contar. Numa das regiões de fronteira para a cana neste período percebemos o quanto de transformação social, cultural e econômica uma usina é capaz de proporcionar.
Uma região de pecuária extensiva tradicionalmente emprega muito pouca gente. Com isso a economia local fica muito restrita, gerando um significativo contingente da população sem oportunidades de emprego. Este ambiente dá margem para a ação oportunística de políticos fisiologistas que fazem usufruto do clientelismo para manter-se no cenário político.

A conseqüência disso é que a população local cria e passa a cultivar a cultura da indolência, a qual não é compatível com a agricultura.
E na época em que eu estava liderando um destes projetos greenfield implantados sobre pastagens degradadas foi que conheci Vanusa.
Vanusa diferenciava-se facilmente da população local. Vanusa era descendente de imigrantes italianos. Seus ascendentes, em seu país original, já trabalhavam com afinco no cultivo da terra. Por isso, aos 8 anos de idade Vanusa já não achava tanta graça nas bonecas, mas apreciava muito dirigir o trator do sítio, um Valmet 65. Com ele, ela arava a terra para o plantio do milho.
Ela também aprendeu a gostar da criação. Seus pais mantinham no fundo da propriedade, perto da casa simples construída pela própria família, um chiqueiro com seus porcos cachaços com traços nítidos da raça Duroc e um pequeno aviário com galinhas caipiras de excelente linhagem.
Mas a vida dura gerou ao patriarca sérios problemas de saúde. As fortes dores nas costas eram os primeiros sintomas de duas hérnias de disco que se desenvolviam silenciosamente e impediram o pobre homem de executar parte do trabalho quotidiano.
Vanusa era a segunda de quatro filhos, mas era a que demonstrava maior vocação para a vida no campo. Aos 10 anos já sabia regular os implementos de plantio de grãos e as barras aplicadoras de defensivos. E aos 14 já tinha conhecimentos de manutenção mecânica e elétrica básicas para diagnosticar e consertar os diferentes equipamentos agrícolas da propriedade.
Embora ajudasse a família nas atividades produtivas, ela também tinha tempo para se divertir. Jogava futebol todos os finais de semana, inclusive sendo selecionada para jogar oficialmente no time feminino da cidade. Além disso, nos dias de verão, passava o final da tarde “pescando” bagres no brejo da propriedade. Voltava para casa pouco antes do Sol se pôr, toda suja de lama, e finalizava seu recreio com um delicioso banho de mangueira com a água gelada do poço no fundo de casa.
Precocemente teve que assumir muito das atividades do pai no dia-a-dia da propriedade rural, mas com a chegada da agroindústria, passou a ser muito mais interessante do ponto de vista econômico tentar uma carreira na usina. Mandou currículo para a recém chegada empresa e foi chamada para uma entrevista.
Começou como motorista de ônibus, transportando turmas de trabalhadores rurais. Acordava todos os dias às 4 da manhã e estava muito feliz pela oportunidade que tinha recebido. Quando o seu ônibus tinha que passar por manutenção preventiva, fazia questão de acompanhar e repassar aos mecânicos todo o seu diagnóstico dos diferentes componentes do veículo. Durante os abastecimentos de combustível, aproveitava o tempo para fazer a limpeza do seu "cockpit" e verificar a calibragem dos pneus.
O zelo com seu equipamento ganhou a atenção dos gestores do transporte e ela foi chamada para entrar em um programa de treinamento para formar instrutores, mesmo tendo pouco tempo de experiência na função.
Mas Vanusa, também apresentava outras qualidades. Defendia causas importantes como a segurança no trabalho, ajudou a desenvolver manuais de boas práticas e voluntariamente se candidatou a auditora no programa de 5S da companhia.
Foi então que eu a convidei para assumir um dos turnos do transporte como líder do processo. A partir daquele momento, ela passou a gerir uma equipe de 40 motoristas, a maioria homens e desacostumados a receber ordens de uma mulher no trabalho.
Mas Vanusa era cativante e muito carismática. Além de uma beleza jovial, ela impunha respeito pelo seu grande conhecimento operacional rapidamente adquirido e por uma firmeza impressionante nos seus argumentos.
Sua proatividade era impressionante. No rádio-amador que utilizávamos para a comunicação das frentes de trabalho com o Centro de Controle Operacional (CCO) ela parecia onipresente. Onde existisse algum problema, podíamos ter certeza que a Vanusa era a primeira a chegar e rapidamente o resolvia.

Nós precisávamos de muita mão-de-obra, mas tínhamos um quadro de 2,2 mil funcionários e o município onde nos situávamos tinha uma população de apenas 2 mil habitantes. Nesta situação, a cidade vivia uma condição de pleno emprego, o que significava "só não trabalha quem não quer!"
Sendo a operação agrícola em usina um ambiente predominantemente masculino, pela própria dureza do trabalho, a presença feminina na maioria das companhias deste setor não ultrapassa os 15%. No nosso caso, a participação de mulheres chegava próximo aos 40%. Entretanto, até aquele momento não tínhamos conseguido constituir uma frente de trabalho exclusivamente feminina.
As frentes mistas, com homens e mulheres, aumentavam nossa exposição ao risco de assédio sexual, pois as operações aconteciam 24 horas por dia e o ambiente era a "roça", onde é difícil monitorar o comportamento dos colaboradores.
Meu plano era constituir uma frente de plantio mecanizado totalmente operada e gerida por mulheres. Propus ao gerente técnico que poderíamos constituir esta frente e que a líder poderia ser a Vanusa. E já sem surpresa, a minha idéia foi aceita e o gerente rapidamente começou a planejar a movimentação da mão-de-obra para introduzirmos este novo conceito de trabalho.
Fiz questão de participar da comunicação do novo desafio à Vanusa e pude ouvir suas primeiras palavras já como autoridade sobre a frente feminina:
"Doutores, hoje vocês estão realizando um grande sonho para mim e para todas estas meninas. Nós vamos mostrar que existe sim diferenças entre o nosso trabalho e o trabalho dos homens. Nós somos mais cuidadosas com os equipamentos, mais cuidadosas com a qualidade do serviço executado. Nós não operamos nossas máquinas apenas com a visão de produzir mais, mas nós operamos com a visão de produzir melhor!"
Diante deste discurso, ficamos mais confiantes que tínhamos uma liderança real na nossa frente.
O primeiro grande desafio de Vanusa foi conciliar o transporte das colaboradoras, pois elas eram provenientes de 5 cidades diferentes, o que transformava esta operação numa difícil operação logística. E o resultado foi uma solução inovadora utilizando-se do conceito de hubs logísticos que garantiram que o custo de transporte por trabalhador mantivesse dentro do orçamento previsto.
O segundo resultado foi percebido nas auditorias de qualidade, pois na mesma unidade de área (hectare) a frente feminina conseguia uma média de brotação de gemas 20% maior que a frente masculina, utilizando-se a mesma quantidade de mudas. E isto significava mais produtividade e longevidade do canavial, reduzindo de forma muito importante nossos custos.
Por ter conhecido e convivido com a Vanusa, posso considerar as seguintes lições aprendidas:
a) Mesmo que inseridos em um ambiente que prevalece a indolência, a tenacidade oferecida pelos valores transmitidos pela família aos seus filhos os transforma em vencedores;
b) Os nossos sonhos nos levam aonde queremos estar;
c) Trabalhar duro não nos impede de ter uma vida feliz e saudável, e podemos aos finais de semana nos divertir nos brejos atrás de bagres, tomar banho de mangueira ou jogar futebol que isto nos revigora para a labuta diária;
d) Perseverar e dar o melhor de si sempre será reconhecido, em qualquer extrato da sociedade.
Pelas virtudes que enxergo em Vanusa, posso afirmar que eu a considero uma "Mulher Maravilha".

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