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Código Florestal e Pacto Federativo


Reginaldo Minaré

Diferente do Estado unitário, que se caracteriza pela existência de um poder central que é o núcleo do poder político, o Estado federal é constituído por vários centros de poder político autônomo e, portanto, é considerado uma aliança ou união de Estados-Membros. Esse consórcio é organizado por uma constituição, que distribui as competências entre os Entes Federados e não pode ser unilateralmente modificada pelo governo central. Embora no passado tenham ocorrido várias alianças entre Estados, o sistema federativo, tal como é definido hoje, é um fenômeno moderno que nasceu com a aliança firmada pelas treze Colônias britânicas da América do Norte, em 1776, que resultou, em 1787, na Constituição dos Estados Unidos da América - EUA.

Na obra "O federalista", de Alexander Hamilton (1757-1804), pode-se conhecer um pouco dos debates travados durante o processo de construção do federalismo americano. Em especial, os debates envolvendo a partilha de competência legislativa e tributária entre as Colônias independentes e o Poder Central que estava sendo criado. Evidente que a manutenção de maior ou menor autonomia legislativa e tributária é o que determina o equilíbrio ou não de forças entre o Poder Central e os Entes Federados. No processo de definição do Pacto Federativo que resultou no estabelecimento do federalismo americano, procurou-se ao máximo deixar resolvidas as questões relacionadas à distribuição de competências entre os Estados-Membros e o Poder Central. A preocupação com a manutenção de maior margem de poder para legislar e tributar nas mãos dos Estados-Membros prevaleceu sobre a idéia de facilitar a vida dos integrantes da União, por meio da concentração do poder de legislar nas mãos do Poder Central, proporcionando o estabelecimento de regras únicas para todos os Entes Federados. 

Diferente da forma como ocorreu a união de Colônias que resultou na criação do sistema federativo americano, no Brasil, a forma federativa de Estado não nasceu da vontade ou necessidade de aglutinar Estados independentes. Estados já unificados sob um governo central monárquico adotou a organização federal para implantação de um governo republicano.

No Brasil, a opção pela organização federativa se deu na segunda metade do século XIX, mais precisamente com a publicação do Decreto nº 1, pelo então chefe do governo Provisório, Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, em 15 de novembro de 1889. O referido Decreto, em seu artigo 2º, estabeleceu que "as províncias do Brasil, reunidas pelo laço da Federação, ficam constituindo os Estados Unidos do Brasil". Logo após, o texto da Constituição de 24 de fevereiro de 1891 reafirmou a opção pela forma federativa de Estado. O artigo 1º da Constituição estabeleceu que a nação brasileira adota como forma de governo, sob o regime representativo, a República Federativa proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por união perpétua e indissolúvel das suas antigas províncias, em Estados Unidos do Brasil.

Analisando a história do Brasil, verifica-se que aquele debate realizado nos EUA entre 1776 e 1787, e muito bem documentado por Alexander Hamilton, ainda não foi realizado com a mesma intensidade no Brasil. A distribuição de competência legislativa e tributária no Pacto Federativo brasileiro ainda sofre com o ranço do centralismo monárquico.

Atualmente, o artigo 1º da Constituição Federal - CF dispõe que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal (DF), constitui-se em Estado Democrático de Direito.

Sobre a organização do Estado, o artigo 18 da CF estabelece que a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

A atual CF dispõe, em seus artigos 22, 24, 25 § 1º, 30 e 32, sobre a competência legislativa dos Entes Federados, matérias e formas como cada integrante da federação poderá legislar. No artigo 22, são tratadas as competências privativas da União. No artigo 24, estão previstos os temas em que a União, os Estados e o DF podem legislar de forma concorrente. Já o §1º do artigo 25 reserva aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas pela CF. Em outras palavras, esse dispositivo constitucional fixa a competência residual para os Estados e torna legítima sua atuação legislativa em todas as matérias que não foram atribuídas expressamente, de forma privativa ou concorrente, à União ou aos Municípios. O artigo 30 dispõe sobre as competências legislativas dos Municípios e o artigo 32, por sua vez, trata das competências atribuídas ao DF.

Neste trabalho vamos nos ater ao estudo acerca da forma como a CF trata a competência legislativa concorrente entre União, Estados e DF.

Após fixar as matérias que são objeto de competência concorrente, nos incisos I ao XVI do artigo 24, determina a CF que em matéria concorrente cabe à União estabelecer normas gerais (art. 24 § 1º); a competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados (art. 24 § 2º); inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão, para atender a suas peculiaridades, competência legislativa plena (art. 24 §3º); e que a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual no que lhe for contrário (art. 24 §4º).

Diante dos comandos constitucionais acima destacados, fica claro que, uma vez que a União já estabeleceu normas gerais, resta aos Estados a competência concorrente suplementar. Assim exposto, seguem abaixo alguns questionamentos a respeito do entendimento do comando constitucional. 

Primeira pergunta: o que significa a expressão "norma geral" neste caso?

Do latim generális, a palavra geral indica o que abarca uma totalidade, que busca atingir o universal. Verifica-se, portanto, que diante de uma interpretação literal e isolada da expressão norma geral no contexto do artigo 24 § 2º, pode-se entender que uma norma geral estabelecida pela União seria aquela com pretensão de atingir a totalidade. Entretanto, analisando o mencionado dispositivo dentro do conjunto de comandos que tratam da distribuição de competência legislativa entre os entes federados, resta claro que uma interpretação literal isolada não é o melhor caminho para compreender o significado da expressão em análise. Evidente que o legislador, caso pretendesse atribuir esse caráter universal à norma geral estabelecida pela União, teria deixado aquelas matérias que reservou ao campo da legislação concorrente no universo da competência legislativa privativa da união e nem teria instituído a competência suplementar dos Estados e do Distrito Federal.

Pergunta número dois: no que consiste a competência concorrente suplementar?

O termo concorrente, do latim concurrente, indica aquilo que concorre ou coopera para um mesmo fim, forças que se juntam para uma ação ou fim comum e que convergem para o mesmo ponto. Já a palavra suplementar, oriunda do latim supplementu, designa o ato de adicionar a um todo uma parte destinada a ampliá-lo, com o objetivo de suprir ou compensar uma deficiência. Por sua vez, a palavra peculiaridade, do latim peculiare, indica aquilo que é atributo particular, próprio ou especial de alguém, de alguma coisa ou de algum lugar. 

Embora o § 2º do artigo 24 da CF, dispositivo que legitima a legislação suplementar do Estado em matéria já disciplinada por lei federal, não contenha em seu texto a palavra peculiaridade, a competência suplementar não deve ser realizada sem a observância dessa característica. Isto porque, no caso em que não existe norma geral, os Estados só podem exercer plenamente a competência legislativa, segundo o disposto no § 3º do art. 24 da CF, para atender às suas peculiaridades. Ora, se para situações onde não existe norma geral da União, o Estado só pode legislar para atender suas peculiaridades, mais exigente se faz ainda a atenção à sua particularidade nos casos onde uma lei federal tenha disciplinado a matéria.

Pergunta número três: o limite para o Estado-Membro legislar de forma suplementar para atender uma peculiaridade é estabelecido pela norma geral publicada pela União ou pelo texto constitucional?

Peguemos como exemplo o artigo 24, inciso VI, da CF. Nele, o constituinte estabeleceu que compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição.

Escolhido o comando constitucional, consideremos o que é estabelecido pelo atual Código Florestal como exemplo. Nele, o legislador estabeleceu que as florestas e formas de vegetação natural localizadas nas margens de curso d’água são consideradas de proteção permanente, devendo ser preservadas, dependendo da largura do curso d’água, em faixa que pode variar de 30 a 600 metros em ambas as margens.

Diante do que é estabelecido pela CF e pelo Código Florestal, identificando, com a devida fundamentação técnica, ser exagerada a largura da área a ser considerada como de proteção permanente em determinados cursos d’água, e que uma largura menor poderia assegurar o que é previsto na CF, ou seja, garantir a proteção do meio ambiente, o Governo estadual poderia estabelecer uma faixa mais estreita para a preservação da vegetação naquelas localidades especificas do Estado?

Considerando ser a peculiaridade um atributo particular, próprio de alguma coisa ou de algum lugar, resta evidente que para tratar de forma adequada uma peculiaridade o legislador do Estado-Membro não pode ficar preso ao que é estabelecido pela regra geral. A identificação de uma peculiaridade regional e seu adequado regramento, sob pena de o legislador estadual não poder atuar com a precisão que a situação exige, não pode estar subordinada ao comando geral estabelecido pela União. É legitimo e constitucional o fato de uma norma suplementar, devidamente fundamentada, construída para atender uma situação particular regional, ter reconhecida sua superioridade perante uma regra geral, desde que ao ampliar ou reduzir o escopo da norma federal não deixe de atender ao comando constitucional que fundamenta o critério de competência legislativa concorrente. No caso especifico em análise, o comando constitucional exige a garantia da preservação do meio ambiente, e sendo a lei estadual apta a garantir essa proteção, mesmo contrariando a lei federal, não há que falar em ilegalidade ou inconstitucionalidade. Dessa forma, não seria necessário modificar o atual Código Florestal para garantir uma atuação legitima dos Estados-Membros, ou seja, ampliando ou reduzindo o escopo de aplicação da regra geral.

Evidente, portanto, que o limite para o Estado-Membro legislar de forma suplementar para atender uma peculiaridade deve ser extraído dos comandos constitucionais, e não da regra geral estabelecida pela União.

Especificamente sobre a regra geral estabelecida pelo atual Código Florestal a ser aplicada no caso das áreas de proteção permanente, não dá para defender a idéia de que as características do litoral de São Paulo e do Rio Grande do Norte são semelhantes e que a regra geral estabelecida pela União é a mais adequada para se aplicar nas duas localidades. O legislador federal atuaria de forma razoável se efetivamente estabelecesse uma regra geral, ou seja, exigisse que fossem mantidas áreas de preservação permanente, deixando aos Estados e ao DF a tarefa de delimitar essas áreas e garantir sua manutenção.

Além dessa questão constitucional envolvendo distribuição de competências, na discussão da reforma do atual Código Florestal, pode-se identificar argumento no sentido de que o estabelecimento de critérios estaduais divergentes do comando estabelecido pela regra geral afastaria a uniformidade legislativa pretendida, o que dificultaria o entendimento das regras e poderia gerar custos adicionais aos investimentos devido à necessidade de adaptação às regras diferenciadas. Efetivamente esse argumento não deve ser considerado como determinante. Embora ninguém negue que a possibilidade de estabelecer uma regra única e eficiente seja salutar, não é recomendável que se sacrifique parcela da população que pode atendida de forma diferenciada sem prejudicar o objetivo que se almeja com o regramento. Sacrifício dessa natureza não é recomendável, visto que visa apenas garantir a manutenção de uma norma federal monolítica.

Outro argumento que pode ser identificado no âmbito dos debates sobre a reforma do atual Código Florestal, é o de que os Governos estaduais não estariam devidamente capacitados para legislar com autonomia sobre essa área. Esse argumento efetivamente não deve ser considerado e nem merece ser comentado.

Como se pode verificar, no âmago do debate envolvendo a reforma do Código Florestal está a questão historicamente mal resolvida da distribuição de competência legislativa entre os Entes Federados. O apego exagerado da União ao poder que é conferido pela centralização da competência para legislar e tributar está dificultando o desenvolvimento dos demais Entes Federados. Esse centralismo também não mais se justifica diante do elevado grau de desenvolvimento atingido pelos Estados brasileiros.

Resta claro, portanto, que o debate envolvendo a revisão do atual Código Florestal seria bem mais leve e mais produtivo para a sociedade se realizado em um ambiente fundamentado por um Pacto Federativo menos arcaico.

Reginaldo Minaré
Advogado e Mestre em Direito

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