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Bioética e Biodireito


Reginaldo Minaré

· Introdução

No ano de 1969, nos Estados Unidos da América – EUA o filósofo Daniel Callahan e o psiquiatra Wilard Gaylin, motivados pelas denúncias e processos acerca de abusos no campo da experimentação com seres humanos, tomaram a iniciativa de reunir cientistas, pesquisadores e filósofos para discutirem a respeito dos procedimentos em pesquisa com humanos.
Embora o debate tenha sido iniciado por Callahan e Gaylin em 1969, a sentença da Corte Suprema do Estado de New Jersey (EUA) no caso Karen Ann Quinlan, em 31 de março de 1976, mesmo não envolvendo efetivamente uma atividade de pesquisa - salvo se pensarmos em uma pesquisa com relação ao comportamento - representa a instituição oficial do primeiro comitê interdisciplinar de ética. Karen, devido a um gravíssimo traumatismo neurológico, estava em coma havia um ano e, naquele momento, a pergunta que se fazia à opinião pública era se a sobrevivência a todo custo de uma pessoa naquelas condições era lícita ou se era mais justo, ao contrário, deixar que a natureza seguisse seu curso normal?

Posteriormente ao caso Karen, outros comitês foram formados para o estudo de situações diversas, por exemplo, avaliar protocolos de experimentação com doentes e outras situações especiais no âmbito da assistência à saúde, firmaram-se, então, as funções de apoio, de orientação, de ponto de referência e deliberação dos comitês de ética.

Concomitante a esses acontecimentos, o oncólogo americano Van Rensselaer Potter, preocupado com a condução das pesquisas envolvendo a vida humana e extra-humana, e buscando questionar o progresso e para onde o avanço da ciência e tecnologia estava levando a cultura ocidental, criou a palavra Bioética e trabalhou a definição de seu significado conceptual, sugerindo que as pessoas pensem Bioética como uma "ponte" entre a biociência e a ética, bio-ética portanto, que combina humildade, responsabilidade, e uma competência interdisciplinar e intercultural, que potencializa o senso de humanidade.

· Bioética e Biodireito no Brasil.

Diante da argumentação acima apresentada e observando a recente história da Bioética no Brasil, podemos constatar que tanto as preocupações de Callahan e Gaylin quanto as de Potter, foram incorporadas pelas duas grandes linhas normativas que se desenvolveram no Brasil.
O modelo normativo desenvolvido foi estruturado a partir da criação de duas grandes Comissões, ou seja, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio (Lei nº 11.105 de 2005 – que revogou a Lei 8.974/95), cuja competência abrange as atividades envolvendo a vida humana e extra-humana no campo da engenharia genética, e a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – CONEP (Resolução 196 de 1996 - do Conselho Nacional Saúde – CNS), cuja competência, por sua vez, abrange as atividades de pesquisa envolvendo seres humanos na área da saúde.

Observando as áreas de atuação de cada Comissão, podemos verificar que as duas se completam em um determinado momento, ou seja, quando uma pesquisa envolvendo seres humanos na área da saúde envolver também métodos e técnicas de engenharia genética.

· Bioética e Biodireito: Problemas com a regulamentação
Apesar da idéia contida no modelo normativo acima mencionado ser bastante rica, e propor um bom sistema para a análise bioética dos procedimentos das pesquisas no âmbito das biociências, o trabalho de construção da legislação necessária para fundamentar uma atuação plena do Poder Público não foi desenvolvido com a excelência de qualidade que a importância do segmento exige.

No que diz respeito à regulamentação das atividades envolvendo engenharia genética, uma sucessão de falhas da assessoria jurídica, que não se atentou devidamente para a prévia análise da sistematização do conteúdo da norma em elaboração com as normas em vigência e com a observância do procedimento constitucional a ser adotado no processo legislativo, possibilitou a criação de uma série de obstáculos à plena aplicação da então Lei nº 8.974/95. Obstáculos jurídicos que foram afastados com a elaboração da Lei nº 11.105/05, que revogou a Lei nº 8.974/95.

No campo das pesquisas envolvendo seres humanos na área da saúde, embora tenha ocorrido a criação da CONEP, pelo fato da mesma ter sido instituída por meio de uma Resolução do Conselho Nacional Saúde - CNS, a base legal necessária à fundamentação da legalidade de algumas competências atribuídas à CONEP não foi devidamente preparada. O fato de não ter nenhuma lei que estabeleça as competências do CNS ou da própria CONEP, a estrutura normativa que foi construída possui uma base frágil e certamente só não foi ainda contestada pelo fato da CONEP realizar uma atividade muito simpática à população.

· Sobre a estrutura do CNS e da CONEP.

O CNS foi criado pelo Decreto nº 99.438/90, que, por sua vez, regulamentou a Lei 8.028/90 – já revogada pela Lei 8.490/92 - que dispunha sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios. Fundamentando-se, mais precisamente, no artigo 57 da Lei 8.028/90, que dispunha da seguinte forma: "Art. 57. O Poder Executivo disporá sobre a organização e funcionamento dos Ministérios e órgãos de que trata esta lei, especialmente do Conselho de Governo e de suas Câmaras."

Verifica-se, portanto, que o CNS foi edificado sobre uma base legal que deixa muito limitado o seu campo de atuação e, conseqüentemente, essa limitação atinge a CONEP, visto ser uma Comissão criada por uma Resolução do CNS.
Atualmente a Lei nº 10.683, de 2003, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, estabelece em seu artigo 27, inciso XX alínea h, que a pesquisa científica e tecnológica na área de saúde faz parte das competências do Ministério da Saúde, e em seu artigo 29, inciso XX, dispõe que o Conselho Nacional de Saúde integra a estrutura básica do Ministério da Saúde.

Embora a atribuição de competência para o MS atuar na área da pesquisa científica e tecnológica em saúde e a manutenção do CNS como integrante da estrutura básica do MS estejam previstas na Lei 10.683/03, não temos nenhuma lei definindo as competências do CNS.

Já as diretrizes para o sistema de revisão dos aspectos éticos dos protocolos de pesquisas biomédicas foram estabelecidas por meio de uma Resolução emanada do CNS, Resolução que também criou a CONEP.

Uma corrente normativa assim construída quando confrontada com o princípio da legalidade assegurado pelo artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal - CF, que determina que: "Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.", deixa evidente o seu limitado campo de alcance, pois, como podemos verificar, o texto constitucional contempla, para fins de criação de obrigações, apenas lei e não Decretos, Resoluções, Portarias ou Instruções Normativas.

Em estrita harmonia com o que dispõe o inciso II do artigo 5º do texto constitucional, encontra-se o artigo 37, também da CF, que determina que: "A Administração Pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios obedecerá aos princípios da legalidade (...)" etc.

Embora o artigo 84, inciso VI, alínea a da CF, com a redação atribuída pela Emenda Constitucional nº 32 de 2001, estabeleça competências para o Presidente da República dispor mediante decreto sobre a organização e funcionamento da administração federal - quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos - pelo fato do artigo 60, § 4º inciso IV, também da CF, determinar que não será objeto de deliberação a emenda tendende a abolir os direitos e garantias fundamentais, e o princípio da legalidade contido no artigo 5º constituir um dos principais pilares desses direitos e garantias fundamentais, não há que se falar na possibilidade do Presidente da República criar obrigações para o cidadão senão por meio de lei devidamente aprovada pelo Congresso Nacional.

Reforçando ainda mais o que até aqui foi colocado, o próprio artigo 84, inciso IV, da Constituição Federal, delimita a competência regulamentar do Chefe do Poder Executivo ao estabelecer que ao Presidente da República compete sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir Decretos e regulamentos para sua fiel execução. (grifei).

Verifica-se, portanto, que o Decreto, salvo a exceção contida no inciso VI do artigo 84 da CF, é ato estritamente subordinado, ou seja, dependente de lei. Tudo que foi dito a respeito do Decreto e de seus limites, aplica-se ainda com maior rigor às Portarias, Resoluções, Instruções Normativas, Regimentos ou quaisquer outros atos gerais do Executivo. Pois todos os atos acima citados, na pirâmide jurídica, alojam-se em nível inferior ao Decreto. Enquanto o Decreto é ato do Chefe do Poder Executivo, os demais assistem a autoridades de escalão mais baixo e, conseqüentemente, investidas de poderes menores.

Conclui-se, então, que se o Decreto não pode obrigar os indivíduos, menos ainda poderão fazê-lo Instruções Normativas, Portarias ou Resoluções.

Assim, mesmo com o artigo 1º do Decreto 99.438/90 estabelecendo competência para o CNS acompanhar o processo de desenvolvimento e incorporação científica e tecnológica na área de saúde, visando à observação de padrões éticos compatíveis com o desenvolvimento sócio cultural do país, não pode o Conselho obrigar a pessoa a fazer ou deixar de fazer alguma coisa sem a devida fundamentação legal, ou seja, sem a integral observância do princípio constitucional da legalidade.

Analisando o texto da Resolução 196/96 do CNS, que cria a CONEP e estabelece normas para a pesquisa científica e tecnologia em saúde, podemos identificar algumas competências atribuídas à CONEP e algumas exigências que são feitas às instituições que realizam pesquisas envolvendo humanos, que extrapolam a esfera de legitimidade da Comissão e até mesmo do CNS dentro do campo da legalidade, que passamos a analisar:

1º- Uma interpretação extensiva dos textos dos itens III.2 e III.3 da Resolução 196, permite extrapolar até mesmo a competência do MS, visto que ela é restrita à pesquisa científica e tecnologia na área de saúde, e não à pesquisa de qualquer natureza e em qualquer área de conhecimento.

III.2- Todo procedimento de qualquer natureza envolvendo o ser humano, cuja aceitação não esteja ainda consagrada na literatura científica, será considerado como pesquisa e, portanto, deverá obedecer às diretrizes da presente Resolução. Os procedimentos referidos incluem entre outros, os de natureza instrumental, ambiental, nutricional, educacional, sociológica, econômica, física, psíquica ou biológica, sejam eles farmacológicos, clínicos ou cirúrgicos e de finalidade preventiva, diagnóstica ou terapêutica.

III.3 - A pesquisa em qualquer área do conhecimento, envolvendo seres humanos deverá observar as seguintes exigências:

2º- No item VII criou-se, por meio de Resolução, uma obrigação para aqueles que realizam pesquisas científicas na área de saúde, ao exigir que toda pesquisa envolvendo seres humanos deverá ser submetida à apreciação de um Comitê de Ética em Pesquisa - CEP. Como foi visto, por força do princípio da legalidade, toda obrigação deve ser estabelecida por lei e não tem nenhuma lei criando essa exigência.


VII - COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA-CEP
Toda pesquisa envolvendo seres humanos deverá ser submetida à apreciação de um Comitê de Ética em Pesquisa.
3º- Os itens VII.1 e VII.2 também estabelecem obrigações, pois exigem que todas as instituições que façam pesquisas envolvendo seres humanos deverão constituir um CEP ou submeter o projeto à apreciação do CEP de outra instituição. Também não tem nenhuma lei fundamentando essa exigência.

VII.1 - As instituições nas quais se realizem pesquisas envolvendo seres humanos deverão constituir um ou mais de um Comitê de Ética em Pesquisa- CEP, conforme suas necessidades.

VII.2 - Na impossibilidade de se constituir CEP, a instituição ou o pesquisador responsável deverá submeter o projeto à apreciação do CEP de outra instituição, preferencialmente dentre os indicados pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP/MS).

4º– As competências para normatizar e deliberar de forma autorizativa sobre atividades no campo da pesquisa científica e tecnologia em saúde não são atribuídas de forma clara ao CNS. O artigo 1º do Decreto 99.438/90 dispõe que compete ao CNS acompanhar o processo de desenvolvimento e incorporação científica e tecnológica na área de saúde, visando à observação de padrões éticos compatíveis com o desenvolvimento sócio cultural do país, mas não diz, claramente, que o estabelecimento de normas e a deliberação de caráter autorizativo sejam atribuições do CNS. Dessa forma, questionáveis também são as competências atribuídas à CONEP. Na alínea f do item VIII.4 da Resolução, a competência atribuída à Comissão para proibir ou interromper pesquisas carece de respaldo legal. Pois não existe uma lei determinando que o MS, o CNS ou a CONEP podem, e em quais situações, proibir ou interromper pesquisas na área de saúde. (grifei)

VIII - COMISSÃO NACIONAL DE ÉTICA EM PESQUISA (CONEP/MS)
A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa - CONEP/MS é uma instância colegiada, de natureza consultiva, deliberativa, normativa, educativa, independente, vinculada ao Conselho Nacional de Saúde.
VIII.4 - Atribuições da CONEP - Compete à CONEP o exame dos aspectos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos, bem como a adequação e atualização das normas atinentes. A CONEP consultará a sociedade sempre que julgar necessário, cabendo-lhe, entre outras, as seguintes atribuições:

f) rever responsabilidades, proibir ou interromper pesquisas, definitiva ou temporariamente, podendo requisitar protocolos para revisão ética inclusive, os já aprovados pelo CEP;

5º- As exigências e obrigações criadas no item IX.1 ao IX.8, que tratam da operacionalização do sistema CONEP/CEP, por não terem amparo em lei, dificultam a implementação das mesmas. Inclusive, não existe previsão legal para fundamentar a aplicação de multas por parte da CONEP, no caso de descumprimento da Resolução.


IX.1 -Todo e qualquer projeto de pesquisa envolvendo seres humanos deverá obedecer às recomendações desta Resolução e dos documentos endossados em seu preâmbulo. A responsabilidade do pesquisador é indelegável, indeclinável e compreende os aspectos éticos e legais.

IX.2 - Ao pesquisador cabe:
a) apresentar o protocolo, devidamente instruido ao CEP, aguardando o pronunciamento deste, antes de iniciar a pesquisa;
b) desenvolver o projeto conforme delineado;
c) elaborar e apresentar os relatórios parciais e final;
d) apresentar dados solicitados pelo CEP, a qualquer momento;
e) manter em arquivo, sob sua guarda, por 5 anos, os dados da pesquisa, contendo fichas individuais e todos os demais documentos recomendados pelo CEP;
f) encaminhar os resultados para publicação, com os devidos créditos aos pesquisadores associados e ao pessoal técnico participante do projeto;
g) justificar, perante o CEP, interrupção do projeto ou a não publicação dos resultados.
IX.3 - O Comitê de Ética em Pesquisa institucional deverá estar registrado junto à CONEP/MS.

IX.4 - Uma vez aprovado o projeto, o CEP passa a ser co-responsável no que se refere aos aspectos éticos da pesquisa.

IX.5 - Consideram-se autorizados para execução, os projetos aprovados pelo CEP, exceto os que se enquadrarem nas áreas temáticas especiais, os quais, após aprovação pelo CEP institucional deverão ser enviados à CONEP/MS, que dará o devido encaminhamento.

IX.6 - Pesquisas com novos medicamentos, vacinas, testes diagnósticos, equipamentos e dispositivos para a saúde deverão ser encaminhados do CEP à CONEP/MS e desta, após parecer, à Secretaria de Vigilância Sanitária.

IX.7 - As agências de fomento à pesquisa e o corpo editorial das revistas científicas deverão exigir documentação comprobatória de aprovação do projeto pelo CEP e/ou CONEP, quando for o caso.

IX.8 - Os CEP institucionais deverão encaminhar trimestralmente à CONEP/MS a relação dos projetos de pesquisa analisados, aprovados e concluídos, bem como dos projetos em andamento e, imediatamente, aqueles suspensos.


· Conclusão


Diante do que foi exposto, pode-se concluir que o modelo de gestão do sistema de revisão dos aspectos éticos dos protocolos de pesquisas na área da saúde, fundamental para garantir o respeito à dignidade humana da pessoa, precisa ser fortalecido, principalmente pela relevância das atividades que foram atribuídas à CONEP.

Para sanar as deficiências do modelo, inclusive criar uma base legal para a aplicação de multas e criminalizar condutas abusivas, a proposição de um projeto de lei regulamentando a matéria se faz necessário. Cabe ressaltar que o Código Penal - CP, que é de 1940, não está devidamente atualizado e pode não ser o instrumento adequado para o Ministério Público lançar mão no caso de ocorrer uma prática abusiva não prevista adequadamente no texto do Código.

Todavia cabe ressaltar, também, que a competência para criar órgão na administração federal é do Presidente da República. Cabe, portanto, ao Chefe do Poder Executivo iniciar, já com atraso, um debate que não pode deixar de ser realizado com a participação do Congresso Nacional.

REGINALDO MINARÉ

Advogado e Diretor Jurídico da ANBio

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