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A retroatividade da Lei da Ficha Limpa é constitucional


Reginaldo Minaré

No texto original da Constituição Federal - CF de 1988, inserido no capítulo que dispõe sobre os direitos políticos, a redação do § 9º do artigo 14 era a seguinte:

§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

Com base no texto constitucional então em vigor, o legislador elaborou a Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, que estabelece os casos de inelegibilidade.

Posteriormente, o Constituinte Revisor, realizando a revisão Constitucional prevista pelo artigo 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, modificou, por meio da Emenda de Revisão nº 4, de 07 de junho de 1994, o § 9º do artigo 14 da CF. Com a modificação realizada o § 9º do artigo 14 da CF passou a ter a seguinte redação:

§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

Foram introduzidas à redação original do § 9º em análise as seguintes expressões: "probidade administrativa" e "moralidade para exercício de mandato considerada a vida pregressa do candidato".

Verifica-se que o Constituinte Revisor usou duas expressões que tem como termos principais duas palavras conceituais, probidade e moralidade, que muito dificilmente se encontrará consenso em suas definições, principalmente quando utilizadas em contexto que tem como objetivo a proteção da probidade administrativa e da moralidade para exercício de mandato considerando a vida pregressa do candidato.

A leitura do texto constitucional indica que os termos, probidade e moralidade, estão diretamente ligados à honestidade no trato com a coisa pública. Dessa forma, poder-se-ia até argumentar que as situações e crimes definidores da inelegibilidade deveriam estar diretamente ligados a questões administrativas. Entretanto, como foi visto o § 9º do artigo 14 da CF fala de moralidade para exercício de mandato e não em moralidade administrativa. Assim, verifica-se que o critério para estabelecimento de quais situações ou crimes ensejam a inelegibilidade deve ser pautado por decisão política e não pela observância de um determinado comando ou limitação constitucional.

Cabe ressaltar que essas expressões utilizadas pelo Constituinte Revisor não representam inovação à história constitucional brasileira. A redação original da Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, ao tratar dos casos de inelegibilidade trazia, nos inciso II e IV do artigo 151, essas mesmas expressões.

Embora não seja uma inovação, o fato da CF de 1988 contemplar em seu texto, inciso LVII do artigo 5º, o princípio de que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória", impõe um elemento novo que necessariamente deve ser considerado na analise do conteúdo da Lei Complementar que regulamenta a atual redação do § 9º do artigo 14 da CF.

Analisando o conteúdo da Complementar nº 64/1990, com as alterações introduzidas pela Lei Complementar nº 135/2010, observa-se que em nenhum momento o legislador instituiu dispositivo legal que transforma em culpado aquele cuja sentença condenatória ainda não tenha transitado em julgado. O processo existente continuará sua tramitação normal sem qualquer alteração. Não há, portanto, que se falar em inconstitucionalidade por afronta ao princípio da presunção de inocência.

No caso em análise, o que o legislador fez foi estabelecer um momento, no decorrer do processo, que sirva como marco para a atuação preventiva do Estado no exercício da defesa da probidade administrativa e da moralidade para exercício de mandato, considerando a vida pregressa do candidato. Atendeu, portanto, ao que é estabelecido pelo § 9º do artigo 14 da CF. Poderia o Congresso Nacional, inclusive, eleger outro momento como marco, por exemplo, o recebimento de denuncia ou a existência de uma decisão monocrática condenatória.

Especificamente sobre a consideração da vida pregressa do candidato, cabe ressaltar que o Constituinte Revisor não relativizou o conceito clássico de vida pregressa. Por força do texto constitucional sua análise deverá abarcar o passado do candidato e não apenas o que ocorrer a partir da publicação da lei complementar.

Entretanto, o ponto mais polêmico que tem suscitado intensos debates e diversas ações na justiça, diz respeito ao alcance do texto legal aprovado pelo Congresso Nacional, mais precisamente se ele se aplicará aos casos já ocorridos ou se apenas para aqueles que ocorrerem após a publicação da lei complementar nº 135/2010.

Essa polêmica foi potencializada pela atuação dos parlamentares durante a votação do Projeto de Lei da Câmara nº 58/2010 na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania – CCJ do Senado Federal. No texto do projeto de lei oriundo da Câmara dos Deputados, as alíneas j, m e o do inciso I do artigo 1º tinham as seguintes redações:


j) os que tenham sido condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, por captação ilícita de sufrágio, por doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou do diploma, pelo prazo de 8 (oito) anos a contar da eleição;

m) os que tenham sido excluídos do exercício de profissão, por decisão sancionatória de órgão profissional competente, em decorrência de infração ético-profissional, pelo prazo de 8 (oito) anos, salvo se o ato houver sido anulado ou suspenso pelo Poder Judiciário;

o) os que tenham sido demitidos do serviço público em decorrência de processo administrativo ou judicial, pelo prazo de 8 (oito) anos, contado da decisão, salvo se o ato houver sido suspenso ou anulado pelo Poder Judiciário;Durante os debates na CCJ foi argumentado que as redações, pelo fato da CF vedar uma lei retroagir para prejudicar, deveriam ser modificadas. Os textos foram modificados e as alíneas foram assim publicadas:


Com as mudanças introduzidas, as alíneasj, m e o seguiram o padrão de redação das alíneas e, f, g e l do mesmo dispositivo legal, que se iniciam com as seguintes expressões:

e) os que forem condenados.........

f) os que forem declarados...........

g) os que tiverem suas contas......

l) os que forem condenados.........

Embora a forma como a redação do projeto de lei foi feita na Câmara dos Deputados não possa ser considerada ideal, não se deveria ter levantado dúvida a respeito da retroatividade do texto. Pois o texto da CF, que o projeto de lei em análise visava regulamentar, ao exigir a consideração da vida pregressa do candidato não estabeleceu que essa consideração fosse feita a partir da publicação da lei complementar. A CF não criou um conceito especial de vida pregressa para ser aplicado aos candidatos. Inequívoca é a necessidade de se aplicar o conceito clássico de verificação da vida pregressa, que é baseado na análise do passado.

Com o devido respeito à CCJ do Senado Federal, o argumento utilizado para a fundamentação das modificações realizadas no texto do projeto de lei que deu origem à Lei Complementar nº 135/2010, baseado na existência de uma inconstitucionalidade relacionada à irretroatividade da lei, não se sustenta. 

Em nenhum momento o projeto de lei originário da Câmara dos Deputados propunha uma retroatividade que prejudicaria alguém que tivesse algum processo em andamento. O texto não ampliava a pena de nenhum ilícito nem modificava regra processual. Dessa forma, mesmo se o Senado aprovasse o texto tal como veio da Câmara dos Deputados, qualquer processo em andamento continuaria seu curso já estabelecido e as penas previstas em nada modificariam. Infundado, portanto, o argumento de inconstitucionalidade utilizado. Efetivamente tratou-se de um entendimento político que foi apresentado revestido por um argumento técnico nada convincente.

Entretanto, optou-se por uma mudança e a polêmica sobre a irretroatividade da lei foi fortalecida e se mantém. Caberá agora ao Supremo Tribunal Federal - STF dirimir definitivamente a controvérsia.

Caso o STF referende o entendimento político construído no Senado Federal, criará duas maneiras de se identificar uma ficha limpa. Em outras palavras, o dia 7 de junho de 2010, data da publicação da Lei Complementar 135/2010, servirá como um divisor de fichas. Até esse dia uma ficha limpa será considerada com base nos critérios estabelecidos pelos antigos dispositivos da Lei Complementar nº 64/90, dispositivos que foram modificados ou revogados e que estão, portanto, fora do ordenamento jurídico. Após o dia 7 de junho de 2010, a identificação de uma ficha limpa será realizada por meio dos critérios estabelecidos pelos dispositivos vigentes da lei.

Decidindo dessa forma o STF estará criando um critério especial para a análise da vida pregressa de alguns candidatos, onde vidas pregressas diferentes serão "iguais" por força do calendário e não das ações. Importante observar que além do § 9º do artigo 14 da CF não dar respaldo a esse tipo de privilégio, o caput do artigo 5º da CF é claro ao afirmar que todos são iguais perante a lei.

Referendar o entendimento político que se tentou construir no Senado, com fundamentação técnica convincente, será tarefa difícil para o STF. O dano à credibilidade da instituição será inevitável e a frustração que se abaterá sobre uma sociedade já nada orgulhosa do desempenho da grande maioria dos políticos eleitos será enorme.

Reginaldo Minaré
Advogado e Mestre em Direito

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