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A pior crise de todos os tempos


ANDRE MARQUES VALIO
Quando encontro meus amigos, colegas de profissão e ex-alunos, a primeira pergunta que me fazem é se a atual crise do setor sucroenergético é a pior da história. Pois bem, resolvi dar uma opinião mais fundamentada sobre a questão.
Como a pior crise foi considerada corretamente a ocorrida no triênio 98/99/2000, será com ela que farei as comparações.
No passado:
a) As pressões sociais por reformas nas onerosas políticas de segurança alimentar na Europa colocavam em xeque a produção de açúcar de beterraba, pois todos sabiam que seria inevitável a redução drástica dos subsídios. Foi neste período que grupos econômicos europeus (Louis Dreyfus, Béghin Say, SDA, Sudzucker, Nordzucker, Danisco, Sucden) começaram a flertar com as usinas brasileiras e a partir de 2000 uma série de fusões e aquisições começaram a ocorrer;

b) O Brasil não tinha concorrente em custos e nem em volume na produção de etanol carburante. Os Estados Unidos desenvolviam tecnologia para produzir com maior eficiência o etanol a partir dos cereais, mas os custos ainda eram muito altos. Uma tonelada de milho dificilmente gerava 250 litros de biocombustível;
c) Em 1999 o câmbio saiu de R$1.23 para R$ 1.69 por dólar (Se deflacionarmos pelo IPCA entre 2000 e 2013, em moeda de hoje esses valores seriam R$2.84 e R$3.91, respectivamente). O açúcar VHP (NY#11) variava entre US$c7 e US$c10/lb enquanto os custos de produção variavam entre US$c6 e US$c8. Já para quem produzia exclusivamente etanol, o cenário era muito pior: R$300/m3 de custo contra R$160 de preço de venda para o hidratado (em março de 1999). Estas relações preço versus custos demonstram que a crise não era generalizada, era profunda para as destilarias autônomas (que praticamente desapareceram entre 2003 e 2005), mas era mais palatável para as açucareiras;
d) O Brasil era considerado a maior fronteira agrícola a ser desbravada. Tínhamos uma excelente combinação de estabilidade econômica e política, solos agricultáveis, água disponível e mão-de-obra barata;
e) A taxa básica de juros (SELIC) variava entre 18 e 20% ao ano, porém a taxa de alavancagem das usinas era muito baixa. A maioria das empresas do setor apresentava endividamentos menores que a Receita Bruta Anual;
f) O valor dos arrendamentos e parcerias agrícolas nas áreas de expansão da canavicultura variavam entre 3.7 e 11 toneladas de cana por hectare (4.2 a 12.5% da produção baseado na produtividade média de 1998);
g) Considerando que a agroindústria sucroenergética é altamente intensiva em mão-de-obra, o valor dos salários e exigências trabalhistas alteram de forma pesada os custos de produção. Em 2000, o salário mínimo valia R$151 (se deflacionado pelo IPCA valeria hoje R$349). Naquela época às exigências legais trabalhistas eram muito menores (a temível NR31 entrou em vigor em junho/2005);
h) O produtividade agrícola média nos canaviais de São Paulo em 1998 era de 88 toneladas por hectare e crescia uma média de 1.5% ao ano com a introdução gradativa de variedades mais produtivas;
i) Com a crise instalada, o Setor se coordenou e foi às ruas. Participaram das manifestações os usineiros, os trabalhadores rurais, os fornecedores, a bancada ruralista e até mesmo os ambientalistas que viam no etanol uma energia limpa e uma grande bandeira para o país. A Unica, como entidade de classe, recém fundada em 1997 ganhou projeção nacional e internacional;
j) O time de gestão nas usinas era estável, sendo que na maioria das empresas o "núcleo duro" de tomada de decisões tinha média superior a 10 anos de vivência na companhia;
k) Não se pagava por royalties por novas variedades de cana e todos os anos os programas de melhoramento genético liberavam variedades que representavam significativos avanços em produção de biomassa e em concentração de açúcar;
l) O Brasil não tinha reservas provadas de petróleo e havia dúvidas se algum dia poderíamos ter auto-suficiência em combustíveis fósseis, tornando o etanol estratégico;
Nos dias atuais:
a) As empresas estrangeiras, principalmente as européias, estão desmobilizando todos os seus investimentos em sucroenergia no Brasil, preferindo investir em açúcar no continente africano ou em novas tecnologias na obtenção de energia renovável na própria Europa e Norte da África. Esta desmobilização faz com o preço de venda das unidades industriais seja muito inferior ao valor dos ativos e mesmo assim não surgem compradores;
b) Os EUA evoluíram muito na produtividade do etanol a partir do milho e hoje já produzem 470 litros por tonelada de matéria-prima. Desenvolveram o mercado para o DGS como excelente fonte de alimentação animal e já conseguem produzir a custos menores que o Brasil. As indústrias produtoras de sementes desenvolveram variedades específicas para a produção de etanol e o rendimento agrícola por unidade de área cresceu;
c) O câmbio variou nos últimos 12 meses entre R$2.00 e R$2.30. O contrato NY#11 tem variado entre US$c15.30 e US$c18.00 e os custos médios de hoje estão em US$c21. Os EUA exportam o litro do etanol anidro ao Brasil ao valor de US$0.58 (FOB USA), o que é mais barato que comprar das usinas nacionais (US$0.68 (FOB Usina));
d) A gradativa redução da intensidade e freqüência dos conflitos em países da África Sub-Sahariana, a maior proximidade com os mercados onde mais cresce a demanda de açúcar no mundo (Ásia, Oriente Médio e a própria África), terras agricultáveis em abundância, menores exigências ambientais e mão-de-obra de baixíssimo custo fazem desta região um pólo de maior atração de novos investimentos melhor que o Brasil na ótica chinesa e européia.

e) O endividamento das usinas cresceu absurdamente, tornando impossível pagar em muitos casos. Hoje encontramos com facilidade no setor endividamentos com montante superior a 3 vezes (alguns superiores a 5x) a receita bruta anual;
f) Os arrendamentos e parcerias agrícolas passaram aos patamares de 12 a 23 toneladas de cana por hectare (representando uma inflação real por ser indexada em cana entre 100% e 200%). Isto representa na atualidade que o custo da terra varia entre 16% e 37% do custo total da matéria-prima, considerando-se exclusivamente as regiões não-tradicionais (Noroeste e Oeste de SP, Triângulo Mineiro, GO, MS e MT);
g) O salário mínimo de R$724 representa uma inflação real de 107% nos custos de mão-de-obra. Porém existem casos onde esta inflação foi ainda maior, como por exemplo no preenchimento de cargos para operadores de colhedoras e mecânicos automotivos, pois nestas duas profissões a falta de profissionais os transformou em "moscas brancas" e o incremento real em salário ultrapassou os 200%. A NR31, embora seja um grande avanço nas garantias à segurança do trabalhador rural, reduziu a competitividade do Brasil contra outros países que têm legislação trabalhista mais frágil que a nossa. Apenas em caráter ilustrativo, um ônibus que atenda a 100% da NR31 custa mensalmente em média 50% a mais que um ônibus convencional utilizado em transporte coletivo urbano;
h) Associando o advento da mecanização de colheita, a migração para ambientes de produção de menor potencial de produção, inexperiência na gestão, envelhecimento do canavial e o corte de verbas para os tratos culturais a produtividade em 2014 promete ser de apenas 74 toneladas por hectare na região Centro-Sul (uma perda de quase 16% se comparado com 16 anos atrás). Enquanto isso, a produtividade dos canaviais na Colômbia, África do Sul, Tailândia e Austrália continuaram em uma trajetória crescente, aumentando a competitividade destes países;
i) A Unica perdeu e continua perdendo representatividade e não consegue transitar nos meandros políticos de Brasília. A campanha entitulada "Etanol, o combustível completão", promovida pela entidade, não "pegou", sendo criticada inclusive pelo próprio setor por ter sido onerosa e pouco eficaz. Os trabalhadores rurais, com padrão de vida melhor que naquela época, já não se mostram tão dispostos a lutar, ainda mais contra um governo que consideram "amigo". As políticas de governança e de exposição à mídia das empresas estrangeiras (que hoje representam quase metade do processamento nacional de cana) são totalmente diferentes das aplicadas pelos usineiros do final dos anos 90.
j) As usinas, principalmente os novos entrantes, começaram suas operações entre 2006 e 2009 e já estão na quarta, quinta e até sexta geração de gestores. As constantes mudanças, praticamente anuais, não permitem às companhias reter o conhecimento gerado e os erros se repetem como em um "loop" infinito.
k) Com a aprovação da nova Lei de Sementes e Mudas (10.711/03), as instituições desenvolvedoras começam a cobrar royalties pela utilização de variedades ainda protegidas. Como as variedades mais antigas não davam direito à receita, as instituições começaram freneticamente a lançar materiais novos, sem o devido protocolo de testes (utilizaram-se de ferramentas de regressão matemática para prever o comportamento da cana no campo e também para se estimar longevidade, por exemplo). Com isso, muitos produtos lançados fracassaram e geraram prejuízos às usinas pioneiras que adotaram os novos materiais. Desde 2003, nenhum material foi lançado e recebeu aprovação unânime dos produtores, em qualquer que seja a mesorregião inserida no Centro-Sul. As variedades mais plantadas e cultivadas continuam sendo aquelas obtidas por melhoramento genético anteriores a 1986 e liberadas comercialmente entre 1994 e 1999. As variedades trangênicas, prometidas como revolucionárias desde 2003 nunca saíram dos testes em viveiros;
l) A confirmação de grandes reservas de óleo no pré-sal na costa brasileira em 2007 tornaram reais as possibilidades do Brasil obter auto-suficiência em exploração e produção de combustíveis fósseis. Hoje, 20% de todo o petróleo extraído em território brasileiro pelas plataformas da Petrobrás já é proveniente da camada do pré-sal. Com isso, na ótica do governo atual, o etanol deixa de ser estratégico e contamina parte da população com este conceito.
Conclusões:
a) Continuamos em "berço esplêndido", acreditando que ainda somos os melhores e maiores produtores de bioenergia do mundo. Já perdemos há tempos a liderança e agora precisamos correr muito para recuperar o espaço e o tempo perdidos;
b) Embora o Governo Brasileiro tenha virado as costas para o Setor, perdemos a capacidade de nos defender e reivindicar apoiados na importância sócio-econômica a que fazemos jus;
c) A mão-de-obra mais valorizada, os contratos fundiários mais caros e a menor produtividade do canavial fazem com que os custos da matéria-prima passassem de 65% para 76% do custo total de uma usina média.
Conclusão Principal:
Sim. A crise atual é a pior de todos os tempos!

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