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SOBRE A INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO ARTIGO 11 DA LEI Nº 10.814 DE 2003.



Reginaldo Minaré

SOBRE A INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO ARTIGO 11 DA LEI Nº 10.814 DE 2003.

 

 

No Brasil, infelizmente, alguns setores do Poder Público fomenta a manutenção de uma conjuntura com aspecto de manta de retalhos no campo da definição de política e aplicação da legislação direcionadas à regulamentação das atividades com organismos geneticamente modificados – OGMs, que é muito difícil de explicar e, também, de compreender. Essa postura que é adotada por determinados setores, vai exatamente na contramão do ideal da maioria, que é garantir a coerência das legislações e das políticas da União e dos Estados, criando assim um ambiente de clareza e confiança, onde a estabilidade não seja afetada pela indecisão ou por situações conflituosas nas esferas administrativas e jurídicas, e que seja garantidor do avanço na área da biotecnologia moderna. Segmento que os Estados desenvolvidos, cada vez mais, consideram como setor estratégico para suas economias.

Mesmo com a revogação da Lei 8.974/95 pela Lei 11.105/05, que foi elaborada justamente eliminar os conflitos entre a regulamentação das atividades com OGMs e outras normas com as quais possui estreito relacionamento, em especial a legislação ambiental, setores do Poder Público insistem "garimpar" situações que poderiam gerar conflitos e criar obstáculos ao processo de consolidação do uso das técnicas oriundas da engenharia genética.

Um exemplo é o conflito que está sendo construído com a pretensão de proibir o plantio de variedade geneticamente modificada em área de unidade de conservação e respectiva zona de amortecimento, em terras indígenas, em áreas de proteção de mananciais de água efetiva ou potencialmente utilizáveis para o abastecimento público e em áreas declaradas como prioritárias para a conservação da biodiversidade.

Como caso concreto, podemos citar a pretensão do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA proibir o plantio de soja geneticamente modificada em zona de amortecimento de unidade de conservação. Inclusive, tem lavrado Auto de Infração e aplicado multa de até R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) àqueles que tem cultivado soja geneticamente modificada em zona de amortecimento de unidade de conservação, mesmo não sendo proibido nestas áreas o plantio de soja convencional.

A Lei 9.985/00, que regulamenta o artigo 225, §1°, incisos I, II, III e IV, e institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC, estabelece no inciso XVIII de seu artigo 2°, que zona de amortecimento é o entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade.

Já em seu artigo 25 caput e §§ 1° e 2°, a referida Lei estabelece que as unidades de conservação devem possuir uma zona de amortecimento; que o órgão responsável pela administração da unidade estabelecerá normas específicas regulamentando a ocupação e o uso dos recursos da zona de amortecimento; e que os limites da zona de amortecimento e as respectivas normas regulamentando a ocupação e o uso dos recursos da zona de amortecimento, poderão ser definidas no ato de criação da unidade ou posteriormente.

Por sua vez, o Decreto nº 4.340/02, que regulamenta artigos da Lei 9.985/00, explica em seu artigo 20 inciso VIII, que compete ao conselho de unidade de conservação, manifestar-se sobre obra ou atividade potencialmente causadora de impacto na unidade de conservação, em sua zona de amortecimento, mosaicos ou corredores ecológicos.

Verifica-se, portanto, que nenhuma restrição aos OGMs é imposta pela Lei 9.985/00 ou seu regulamento. O que diz a lei é que os limites da zona de amortecimento e as respectivas normas regulamentando a ocupação e o uso dos recursos da zona de amortecimento, poderão ser definidas no ato de criação da unidade ou posteriormente, e que determinadas atividades humanas poderão estar sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade.

Todavia, lançando mão de um dispositivo da Lei 10.814/03, o IBAMA tem procurado fundamentar o entendimento de que está proibido por lei qualquer atividade que envolver OGMs em zona de amortecimento de unidades de conservação.

Elaborada no calor da disputa entre a razoabilidade científica e a paixão ideológica, a Lei 10.814/03, que estabeleceu normas para o plantio e comercialização da produção de soja geneticamente modificada da safra de 2004, dispõe em seu artigo 11 o que segue:

Art. 11. Fica vedado o plantio de sementes de soja geneticamente modificada nas áreas de unidades de conservação e respectivas zonas de amortecimento, nas terras indígenas, nas áreas de proteção de mananciais de água efetiva ou potencialmente utilizáveis para o abastecimento público e nas áreas declaradas como prioritárias para a conservação da biodiversidade.

Parágrafo único. O Ministério do Meio Ambiente definirá, mediante portaria, as áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade referidas no caput.

Considerando que o único evento de transformação genética de soja autorizado para uso comercial no Brasil já havia sido analisado e aprovado pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio bem antes da aprovação da Lei 11.105/03, e não recebeu nenhuma restrição com relação ao plantio em zona de amortecimento, resta claro que o artigo 11 da citada lei estabeleceu restrições ao arrepio do entendimento da Comissão e sem qualquer fundamentação científica. Todavia, como naquele momento a competência atribuída à CTNBio para identificar a atividade com OGMs que seja potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente estava sendo questionada, a redação do artigo 11 foi introduzida na norma para viabilizar sua votação e aprovação. Atualmente, a competência da CTNBio para identificar as atividades com OGMs que podem ser potencialmente causadoras de significativa degradação do meio ambiente está clara na Lei 11.105/05.

Embora a simples leitura da Lei 10.814/03 seja suficiente para demonstrar seu caráter temporário, ou seja, que trata de uma Lei elaborada para regulamentar a produção de soja geneticamente modificada na safra de 2004, pelo fato de que a Lei 11.105/05 não a revogou totalmente e sim alguns de seus artigos, sua interpretação, em alguns casos, está sendo realizada de forma equivocada e desprovida do rigor necessário à hermenêutica, no sentido de manter a validade de seu artigo 11 e sua aplicação ao cultivo de soja e de outras cultivares geneticamente modificadas. Porém, a Lei 10.814/03 não foi revogada em sua totalidade pelo fato de dispor sobre norma geral necessária à boa administração da biossegurança, mas sim por questões conjunturais.

Importante observar que o Projeto de Lei que deu origem à Lei 11.105/05, tramitou pelo Congresso Nacional até a data de 02 de março de 2005, sendo que sua tramitação no Senado Federal foi concluída no mês de outubro de 2004. Após sua aprovação no Senado, o Projeto de Lei foi enviado à Câmara dos Deputados que não poderia modificar o texto do projeto, mas apenas acolher ou rejeitar as modificações realizadas pelo Senado. Relevante observar também, que a revisão do citado Projeto de Lei pelo Senado se deu antes do conhecimento do texto da Medida Provisória nº 223, de 14 de outubro de 2004, que deu origem à Lei nº 11.092, de 12 de janeiro de 2005, que estabeleceu normas para o plantio e comercialização da produção de soja geneticamente modificada na safra de 2005, e alterava dispositivos da Lei 10.814/03.

Naquele momento, o Senado, para viabilizar o plantio da safra de soja geneticamente modificada de 2005, tratando de uma questão pontual, propôs no texto do Projeto de Lei que deu origem à Lei 11.105/05, apenas a revogação daqueles artigos que poderiam dificultar o plantio da safra de 2005. O que teria sido desnecessário se a Medida Provisória nº 223 tivesse sido editada antes da votação do referido Projeto de Lei pelo Senado.

Outro ponto importante, diz respeito ao fato de que no dia da votação do Projeto de Lei que deu origem à Lei 11.105/05, foi acolhida emenda proibindo o uso da Tecnologia Genética de Restrição de Uso, matéria que é disciplinada pelo artigo 12 da Lei 10.814/03.

Entretanto, o citado artigo 12 proíbe o uso desta tecnologia apenas quando aplicada à soja.

Art. 12. Ficam vedados, em todo o território nacional, a utilização, a comercialização, o registro, o patenteamento e o licenciamento de tecnologias genéticas de restrição do uso e dos produtos delas derivados, aplicáveis à cultura da soja.

(grifei)

Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, entende-se por tecnologias genéticas de restrição do uso qualquer processo de intervenção humana para geração ou multiplicação de plantas geneticamente modificadas para produzir estruturas reprodutivas estéreis, bem como qualquer forma de manipulação genética que vise à ativação ou desativação de genes relacionados à fertilidade das plantas por indutores químicos externos.

Assim, o legislador, objetivando garantir a proibição da Tecnologia Genética de Restrição de Uso, tanto relacionada à safra de soja geneticamente modificada de 2005 quanto para futuras safras de soja e outras variedades vegetais utilizadas pela agricultura, introduziu a proibição no texto do Projeto de Lei e não revogou o artigo 12 da Lei 10.814/03. Ficando, a vedação, aplicável em 2004 ao uso da soja geneticamente modificada e às demais culturas após a publicação da Lei 11.105/05.

Já com relação à restrição do plantio de soja estabelecida pelo artigo 11 da Lei 10.814/03, o legislador não atuou da mesma forma, ou seja, não reproduziu o texto proibitivo no Projeto de Lei que deu origem à Lei de 11.105/05 nem revogou o artigo 11. Evidente, portanto, que o legislador não pretendeu transformar em regra geral a proibição prevista no artigo 11 da Lei 10.814/03, como fez no caso da Tecnologia Genética de Restrição de Uso.

Este dispositivo em análise, embora não revogado pela Lei 11.105/05, tem sua aplicabilidade restrita à safra de soja geneticamente de 2004 e, por força do artigo 12 da Lei 11.092/05, à safra de soja geneticamente modificada de 2005. Até porque, o simples fato do artigo vedar apenas o plantio de soja e não de outros organismos geneticamente modificados, demonstra que o legislador não objetivou atingir o plantio de outras safras e de outras variedades.

Analisando o que até aqui foi argumentado, resta cristalina, como boa água mineral, a inadequação da interpretação que busca fundamentar a aplicação do artigo 11 da Lei 10.814/03, com o argumento de que a Lei 11.105/05 o recepcionou. A hermenêutica jurídica fundada em boa técnica não permite esse tipo de afirmação, visto que o sistema normativo e os fatos não conferem sustentação à conclusão.

Caso o legislador pretendesse acolher a matéria tratada pelo artigo 11 da Lei 10.814/03 no texto do Projeto de Lei que deu origem à Lei 11.105/05, teria agido da forma com agiu no caso da Tecnologia Genética de Restrição de Uso.

Interpretar, portanto, o corpo normativo aplicável à regulamentação das atividades com OGMs e concluir que a Lei 11.105/05 recepcionou o artigo 11 da Lei 10.814/03, é, no mínimo, praticar uma hermenêutica sentimental, impregnada de inclinações políticas e ideológicas, que não deve sobreviver no mundo do Direito.

Inclusive, relevante observar que mesmo não tendo sido revogada pela Lei 11.105/05, não podemos afirmar que Lei nº 11.092/05, que estabeleceu normas para o plantio e comercialização da produção de soja geneticamente modificada na safra de 2005, foi recepcionada pela Lei 11.105/05 e, exigir sua integral aplicação para as futuras safras de soja geneticamente modificada e de outras culturas modificadas.

Para continuar trilhando o caminho na direção de uma hermenêutica jurídica fundamentada, necessário se faz ressaltar que o artigo 14 da Lei 11.105/05, que dispõe sobre as competências da CTNBio, estabelece que compete à Comissão proceder à análise da avaliação de risco, caso a caso, relativamente a atividades e projetos que envolvam OGMs e seus derivados; emitir decisão técnica, caso a caso, sobre a biossegurança de OGMs e seus derivados no âmbito das atividades de pesquisa e de uso comercial de OGMs e seus derivados, inclusive a classificação quanto ao grau de risco e nível de biossegurança exigido, bem como medidas de segurança exigidas e restrições ao uso; e reavaliar suas decisões técnicas por solicitação de seus membros ou por recurso dos órgãos e entidades de registro e fiscalização, fundamentado em fatos ou conhecimentos científicos novos, que sejam relevantes quanto à biossegurança do OGM ou derivado, na forma desta Lei e seu regulamento.

Dessa forma, e levando em conta que a CTNBio não estabeleceu nenhuma restrição de uso com relação à variedade de soja geneticamente modificada aprovada para uso comercial no Brasil, e que a decisão técnica da Comissão, nos termos do § 1º do artigo 14 da Lei 11.105/05, vincula os demais órgãos e entidades da administração quanto aos aspectos de biossegurança de OGM e derivado de OGM analisados. O Ministério do Meio Ambiente, que integra a CTNBio e é um dos órgãos de fiscalização previstos pela Lei 11.105/05, para sanar alguma dúvida a respeito da biossegurança do plantio de soja geneticamente modificada ou de qualquer outra cultura geneticamente modificada naquelas áreas previstas no artigo 11 da Lei 10.814/03 ou qualquer outra situação que suscitar dúvida, seja uma dúvida apresentada por um Conselho de uma determinada unidade de conservação, oriunda do próprio Ministério ou de seu órgão executor, o IBAMA, deve seguir o procedimento estabelecido pela Lei 11.105/05, ou seja, solicitar à CTNBio, que é o órgão competente neste campo, uma análise a respeito da dúvida existente, apresentando seus fundamentos.

Diante da provocação realizada pelo órgão de fiscalização, a CTNBio terá que analisar a matéria e deliberar a respeito, reconhecendo pertinente ou não as questões apresentadas pelo órgão fiscalizador.

Uma vez reconhecida pela CTNBio a necessidade de estabelecer restrições ou medidas de biossegurança adicionais ao plantio de determinada cultura em determinada área, caberá ao interessado cumprir o estabelecido e ao órgão fiscalizador competente atuar para garantir o cumprimento das condições ou da restrição imposta.

Atuando de outra forma, o Poder Público estará caminhando além dos limites estabelecidos pela lei e, conseqüentemente, o justo não prevalecerá. Por exemplo, quando uma cultura geneticamente modificada não apresentar nenhuma diferença com relação aos impactos causados pelo cultivo de sua equivalente convencional em uma zona de amortecimento de uma unidade de conservação, porque impedir o uso da mesma? Porque privar as comunidades indígenas do uso de variedades geneticamente modificadas? Porque proibir "a priori" a realização de uma atividade só pelo fato da mesma envolver OGM?

No campo da biossegurança em engenharia genética, certamente o Poder Público atuará com maior razoabilidade quando fundamentar suas ações em estudos sérios e análises científicas de qualidade. Neste campo, aventuras administrativas, jurídicas e científicas não são recomendadas.

Neste caso, a CTNBio, atuando de ofício ou mediante provocação do interessado, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA ou do Poder Judiciário ou de um diligente representante do Ministério Público, certamente terá que se manifestar a respeito da situação, reafirmando, no caso da soja geneticamente modificada, sua decisão técnica já emitida ou, fazer a revisão da mesma e impor a restrição de uso da soja geneticamente modificada nas zonas de amortecimento das unidades de conservação. Neste caso, o órgão competente para decidir sobre a necessidade ou não de impor restrição de uso ao plantio da soja geneticamente modificada é a CTNBio.

Até o momento, todas as atuações do IBAMA no sentido de embargar o plantio de soja geneticamente modificada em zona de amortecimento de unidade de conservação são questionáveis e, dependendo da manifestação da CTNBio, poderão ser consideradas ilegais.

 

Brasília, 17 de abril de 2006.

 

Reginaldo Minaré

Advogado e Diretor Jurídico da ANBio.

(061) 3328.8428

(061) 9232.6534

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