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Um lugar ao sol


Edivan Júnior Pommerening
Lá, onde o altiplano faz uma quina com a encosta, sentada na terra nua, encontra-se uma mística cabana. De camarote, ela contempla um imenso vale a sua frente, donde à noite ainda ecoa o grito dos desbravadores italianos, que há décadas “bestemavam” com os bois enquanto riscavam os morros com seus arados. O vale é enxadrezado em dois tons de verde: um mais escuro, das árvores nativas e reflorestamentos, e outro mais claro, das plantações de aveia, que se converte em leite após algumas horas de ruminação. Ao longe, montanhas.
Construída com madeira roliça de eucalipto, envernizada para protegê-la dos efeitos do tempo e dos cupins, a cabana tem dois pavimentos: o inferior, social, dedicado a insuflar as amizades através da dialética e da comunhão do alimento. O superior, restrito, serve para descansar o corpo e observar a Via Láctea através de uma telha translúcida e uma varanda debruçada sobre o desfiladeiro. Para abrigar a estrutura, um coberto com telhas de amianto em forma de acento circunflexo, com um grau bastante reduzido de abertura.
É de conhecimento comum que o sol é o protagonista de duas peças teatrais que nunca saem de cartaz: a Aurora e o Crepúsculo. Mas naquele lugar, ele coloca os demais atores junto à platéia e fica sozinho no palco para interpretar magistralmente seu monólogo. Não é a toa que o sol era tão venerado pelos Incas, pois ele transfere vida através dos seus raios. E é nas varandas da cabana que isso pode ser visto com notável brilho, nitidez e contraste, como se estivéssemos olhando por uma luneta com alto poder de aproximação.
À noite, que no período de lua cheia perde em luminosidade para o dia por um placar mínimo, o fogo faz a madeira seca estalar como se fosse milho-pipoca. A fogueira é feita em forma de cone, do mesmo jeito que o faziam os índios norte-americanos do velho oeste. Ela faz a alegria das crianças, que ainda são inocentes quanto aos perigos e as dádivas do fogo, e por isso correm cintilantes ao seu redor feito curumins. Mal sabem elas que o fogo foi e ainda é fundamental para a sobrevivência humana.   
Amplificado por suficientes 150 watts RMS (potência média contínua), o som estridente de uma cinqüentenária viola caipira. A toada do instrumento ressoa no vale, chegando lá embaixo vários segundos depois de o dedo polegar do violeiro beliscar carinhosamente suas cordas. Da garganta dos cantores, histórias bonitas do passado, enobrecendo a vida no campo, o que traz nostalgia à alma dos que um dia já viveram naquela localidade, agora representados pelos seus escassos descendentes e sucessores.
Do mirante de oito metros de altura, onde íngremes, mas seguras escadas de madeira levam ao seu topo, a vista abre-se em 180 graus e alcança mais de 40 quilômetros. No horizonte, as montanhas parecem a cobertura de uma cuca alemã, cuja colônia também auxiliou no empreendimento da região. Há 30 metros da base do mirante, um Martin Pescador toma seu banho matinal no açude, fitado por outro, que tenta equilibrar-se nos fios da rede elétrica. Na certa um macho, deliciando-se com a sensualidade da fêmea em seu momento íntimo.
A ausência de alguns confortos materiais é plenamente ofuscada pela energia do lugar, que nos vira do avesso, numa tentativa quase derradeira de mostrar-nos que a felicidade autêntica vem de dentro prá fora. Em igual procedimento, o silêncio, que no início chega a assustar, viabiliza a audição das súplicas da alma, que constantemente são abafadas pelos ruídos das selvas de pedras, ou mesmo pela nossa resistência de querer ouvi-las. E a boca do vale ainda sussurra a cada doze badaladas: Acorda prá vida! 
O ambiente é de Descanso e reflexão, onde a natureza, o sol e o vento se encarregam de dar o tom e o ritmo da vida, como se o homem e o meio fossem um só corpo e um só espírito, e no fundo o são. Qualquer tentativa de descrevê-lo, inclusive esta, é atitude negligente e parcial, pois há muito Augusto Cury já diagnosticou: “A imagem do quadro é mais complexa do que a descrição de milhares de seus detalhes”. Feliz de Paulo, que obteve o “alvará espiritual” para edificar a cabana em meio àquela pintura.

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